A reforma trabalhista e o custo social da impunidade
Renato da Fonseca Janon
Será que a lei 13.467/2017 atende ao interesse social ao precarizar as condições de trabalho e incentivar a impunidade?
“O maior estímulo para cometer faltas é a esperança de impunidade.” Essa frase atribuída ao filósofo romano CÍCERO revela que, desde a mais remota antiguidade, a falta de punição – ou a punição irrisória – para aqueles que praticam uma conduta ilícita já era uma das maiores ameaças para a estabilidade das relações sociais.
Não é por acaso que, na Grécia Antiga, enquanto a Justiça Divina era representada por THÊMIS, com uma venda nos olhos (símbolo da imparcialidade), a Justiça Humana tinha como patrona a deusa DIKÉ, tradicionalmente esculpida de olhos abertos com uma balança em uma mão e uma espada na outra (símbolo da força e igualdade). De um lado, a força do argumento e, de outro, o argumento da força. Para VON IHERING, no clássico “A Luta pelo Direito”, “a Justiça segura, numa das mãos, a balança, com a qual pesa o direito, e na outra a espada, com a qual o defende. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada é a fraqueza do direito. Ambas se completam e o verdadeiro estado de direito só existe onde a força, com a qual a Justiça empunha a espada, usa a mesma destreza com que maneja a balança”
Em uma sociedade ideal, todos deveriam agir corretamente apenas por um dever de consciência, de modo que sua conduta pudesse ser tomada, por seus semelhantes, como uma “lei universal”, na definição de Kant. Contudo, no mundo real, nem sempre as pessoas são convencidas pela força do argumento. Daí a razão de, na outra mão, a Justiça empunhar a espada da lei. Quando o convencimento racional não for suficiente, o Estado, enquanto detentor do monopólio da jurisdição, tem o dever de recorrer à SANÇÃO, na medida em que, como nem sempre os indivíduos adotam, voluntariamente, um comportamento responsável, cabe à LEI, enquanto norma de conduta revestida de coerção, impor uma pena eficaz para inibir qualquer atitude prejudicial aos demais cidadãos. Se não fosse assim, viveríamos em um estado de anomia que nos levaria ao CAOS. Na ausência de normas impostas por uma autoridade constituída, os conflitos de interesses passariam a ser resolvidos pelo uso da força bruta. A violência estatal seria substituída pela violência individual, sem qualquer mediação ou moderação, resultando em um estado de guerra permanente de todos contra todos (“bellum omnia omnes”, como sugere Thomas Hobbes), que inviabilizaria qualquer possibilidade de convívio social. Portanto, o respeito às leis legítimas é condição fundamental para a convivência dos homens em sociedade.
A norma legal, quando aplicada de forma eficiente, tem um caráter pedagógico e inibitório, desestimulando práticas contrárias ao interesse da cidadania. Por outro lado, o reverso também é verdadeiro. Quando a lei estabelece sanções irrisórias ou não é efetivamente cumprida ela estimula a IMPUNIDADE porque o ato ilícito passa a compensar. E nada abala mais a confiança na democracia e nas instituições republicanas do que a impunidade, ainda mais quando seletiva ou direcionada.
É o que se verificou nas estradas brasileiras após a suspensão dos radares, na Floresta Amazônica após o relaxamento da fiscalização ambiental ou nas relações trabalhistas depois da vigência da lei 13.467/17, que reduziu as penalidades para quem descumpre normas de prevenção e, ainda por cima, tabelou o dano moral em valores irrisórios. São exemplos eloquentes do chamado CUSTO SOCIAL DA IMPUNIDADE.
Vejamos, primeiro, o que aconteceu nas estradas, após o governo federal suspender o uso de RADARES na fiscalização do limite de velocidade. Dados oficiais comprovam que o número de mortos e feridos nas estradas, que estava em uma curva descendente até março de 2019, passou a subir depois que houve a determinação de suspender o uso dos radares. Entre Agosto e Outubro de 2019, o número de mortes subiu 9,1% em comparação com o mesmo período do ano anterior. A inversão da tendência, com elevado custo para as vidas humanas, comprova que, na ausência da efetiva punição para quem infringe o Código de Trânsito, os motoristas se sentiram estimulados a desrespeitarem a lei. E esse aparente “benefício individual”, o de não pagar as multas (se é que alguém pode se achar beneficiado por colocar a própria segurança em risco), acabou resultando em um enorme prejuízo para a sociedade, traduzindo em um custo incomensurável com o aumento de mortos e feridos. A vida não tem preço e a morte de uma pessoa não pode ser calculada em números. Porém, é possível imaginar quanto foi gasto nos hospitais e no atendimento às vítimas desses acidentes, uma despesa repartida por todos os contribuintes, embora nada se compare a dor inestimável dos amigos e familiares dos falecidos. A constatação empírica feita pelo site “estradas.com.br” comprova o CUSTO SOCIAL DA IMPUNIDADE de que falamos:
“Passamos de queda de 7% no total de mortos, nos três primeiros meses de 2019, em relação a igual período de 2018, para aumento de 2,7% de abril a julho e de 2% de agosto a outubro. Os números comparativos nos permitem estimar que, mantida a queda de 7% dos mortos registrada entre janeiro e março, no período que foi de abril até outubro, ao invés de termos 3073 mortos registrados entre abril e outubro de 2018, teríamos 2.857 mortos em 2019. Entretanto, como exatamente neste período de 2019 foram implementadas as medidas de desligamento de radares e proibição da PRF fiscalizar velocidade com seus equipamentos, registramos 3.145 mortos no período (abril-outubro). Isto nos permite estimar que foram 288 mortos a mais, do que seriam caso fosse mantida a tendência de redução de 7% dos mortos detectada no primeiro trimestre de 2019. 288 pessoas morreram, 288 famílias ficaram desamparadas, em apenas dois meses, como consequência direta da IMPUNIDADE. Já entre os feridos a situação é ainda mais grave. Afinal, no primeiro trimestre deste ano, a redução de feridos foi de 4,3% em relação a 2018, baixando de 19.442 para 18.608. Ou seja, 834 feridos a menos. Notícia para comemorar e estimular a aplicação de mais rigor na fiscalização. Todavia, a decisão do presidente da República foi na contramão do bom senso e dos dados, impondo a redução de fiscalização de velocidade. O resultado foi o aumento de feridos em 5,1% entre abril e julho e mais 9,1% entre agosto e outubro. Da mesma forma, mantida a tendência de queda de 4,3% do primeiro trimestre de 2019 em relação a 2018, deveríamos ter registrado nos sete meses posteriores, abril até outubro, queda no número de feridos dos 43.109 no período em 2018 para 41.255 em 2019. Na prática o número de feridos aumentou para 46.055. Isto significa um incremento de 4.800 vítimas em relação ao que deveríamos registrar, se mantida a tendência de queda de 4,3% nos feridos registrada nas rodovias federais no primeiro trimestre deste ano. Portanto, o aumento de vítimas é assustador. Caso fossem mantidas as tendências de queda de 7% de mortos, no primeiro trimestre, e de 4,3% dos feridos, teríamos redução no total de vítimas de 5.088 pessoas. Sendo 288 mortos e 4.800 feridos a menos, somente entre abril e outubro. A mudança na curva fica ainda mais evidente quando analisamos a média mensal de mortos e feridos nas rodovias federais nos anos de 2017 e 2018, bem como nos três diferentes períodos de 2019. A média mensal de mortos e feridos em 2019 aumenta significativamente após março, quando começa o desmonte da fiscalização da velocidade”.
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*Renato da Fonseca Janon é juiz titular da Vara do Trabalho de Lençóis Paulista/SP.
Fonte:sintracimento.org.br