Filiado à:

Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Ladrilhos Hidráulicos, Produtos de Cimento, Fibrocimento e Artefatos de Cimento Armado de Curitiba e Região

Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Ladrilhos Hidráulicos, Produtos de Cimento, Fibrocimento e Artefatos de Cimento Armado de Curitiba e Região

A Lei de Responsabilidade Fiscal e o STF: redução de jornada de trabalho

 

OBSERVATÓRIO CONSTITUCIONAL

Por Luciano Felício Fuck e José Roberto Afonso

O STF pode vir a julgar o mérito do julgamento da constitucionalidade da Lei de Responsabilidade Fiscal. Em artigo anterior, defendemos que fosse restabelecido o parágrafo 3º do artigo 9º, que assegura um menor repasse financeiro proporcional de duodécimos como forma de assegurar que a limitação de empenho venha a ser adotada por todos os Poderes, de modo que o ônus não recaia apenas sobre o Executivo. Neste segundo artigo será examinada a possibilidade de redução temporária da jornada como alternativa à exoneração de servidores efetivos, para fins de correção de eventual excesso apurado na despesa de pessoal de algum ente federado. É aqui defendida a aplicação do previsto no parágrafo 2º do artigo 23 da LRF, suspenso no julgamento da medida cautelar da ADI 2.238[1].

Para assegurar que os governos possam honrar seus compromissos permanentes — em especial os gastos com pessoal — e, ao mesmo tempo, que os servidores recebam seus proventos pelo trabalho realizado ou pela aposentadoria ou pensão concedida, a Constituição de 1988 inovou ao prever, em seu artigo 169, que lei complementar fixará limites para tal despesa. Mais do que isso, adiantou as medidas corretivas se verificado excesso: corte de cargos comissionados, exoneração de servidores não estáveis e, se insuficiente, até mesmo de servidores estáveis.

A LRF substituiu a chamada Lei Camata[2] — que fixava limites apenas por esferas de governo (50% para União e 60% para estados e municípios) — e, consoante o preceito de autonomia dos Poderes, desdobrou aqueles em sublimites, específicos por Poder. Ainda previu, dentre outras medidas, que o controle seja quadrimestral; que, ultrapassado o limite prudencial, não se pode adotar medidas que aumentem mais o gasto (como contratar novos servidores ou conceder aumentos salariais); que o excesso seja corrigido em até dois quadrimestres; e que sanções sejam aplicadas aos governos e aos chefes de Poderes se não tomarem medidas para reduzir o excesso.

Foi suspenso liminarmente, por força da citada ADI, o parágrafo 2º do artigo 23:

“Art. 23. Se a despesa total com pessoal, do Poder ou órgão referido no art. 20, ultrapassar os limites definidos no mesmo artigo, sem prejuízo das medidas previstas no art. 22, o percentual excedente terá de ser eliminado nos dois quadrimestres seguintes, sendo pelo menos um terço no primeiro, adotando-se, entre outras, as providências previstas nos §§ 3º e 4º do art. 169 da Constituição.

(…)

§ 2º É facultada a redução temporária da jornada de trabalho com adequação dos vencimentos à nova carga horária.

(…)”.

Para o servidor, sofrer uma redução de salários e em caráter temporário, por certo, deve ser melhor do que perder o emprego e em caráter definitivo. Para o governo, também, é melhor reduzir jornada e salário que exonerar servidores, ainda mais estáveis, o que prejudica a sua governança e também o bem-estar social de sua região ou localidade.

Corrigido o excesso no gasto com pessoal, até pela recuperação da receita, as administrações públicas não precisariam empreender esforços e tempo para promover concursos e treinamento de novos servidores — que eventualmente precisariam ser cortados depois que economia e receita voltassem a crescer e visando repor aquele servidor exonerado para ajuste do excesso observado em relação à LRF. Assim, o mais importante em se poder usar a alternativa da redução da jornada de trabalho é que os servidores não sofreriam um dano pleno e irreversível como a perda do emprego e de todo o seu salário — em que pese o recebimento de uma indenização por tal demissão.

Econômica e socialmente, a redução da jornada e de salários, como alternativa à demissão, torna-se ainda mais lógica, justa e justificada em tempos de recessão, quando é comum que as folhas salariais excedam os limites legais. E isso se deve mais à inexorável e inevitável queda da receita, decorrente da atividade econômica mais fraca, e não necessariamente ao aumento de salários ou de contratação de servidores — ainda que ambos efeitos possam ocorrer.

A LRF, em seu artigo 66, já considerou esses efeitos do baixo ou nulo crescimento, mas se limitou a duplicar os prazos para ajustes e não suspendeu a necessidade de adoção das medidas corretivas. Mas, entre tais medidas, a lei acrescentou um mecanismo de ajuste temporário (redução de jornada e salários) perfeitamente compatível com um desenquadramento de limite que decorra basicamente de um efeito do ciclo econômico.

Já quando o excesso decorre de um desajuste duradouro, como a contratação de pessoal e a concessão de salários, em ambos os casos, acima das reais possibilidades de um poder em arcar com tais compromissos, cabe aplicar as medidas corretivas de caráter permanente e antecipadas pela Constituição.

Os efeitos da recessão é que tornam premente a definição da ADI sobre a forma mais equânime e equilibrada para promover o ajuste dos gastos com pessoal. Como a aplicação do limite da LRF adota um carregamento de gastos e receitas dos últimos três quadrimestres, só agora tenderá a crescer o número de estados e de prefeituras que superarão os limites legais.

É forçoso reconhecer que, antes, isso era encoberto por práticas demasiadamente criativas, as quais têm sido adotadas em muitos entes federados, de forma diferenciada, para computar qual é realmente o tamanho de seu gasto com pessoal — ora se deixa de computar o imposto de renda na fonte, os terceirizados e até mesmo parte ou o todo do gasto com aposentados e pensionistas, ora se contam, nas receitas, aquelas atípicas, como saques de depósitos judiciais. 

É inegável que a Constituição discrimina, em seu corpo, três medidas corretivas do excesso, mas isso não significa esgotar todo o esforço de ajuste. O próprio caput do artigo 23 da LRF refere-se às três medidas, “entre outras” que poderiam ser adotadas, desde que produzam o mesmo efeito de reduzir a razão folha/receita. Ora, se é possível demitir, com mais razão pode o legislador instituir opções menos drásticas ao administrador e ao servidor, como a redução temporária de jornada de trabalho e na mesma proporção de vencimentos.

Nesse sentido, o parágrafo suspenso liminarmente era perfeitamente consistente e compatível com o caput do referido artigo da LRF, que, vale insistir, listou três dentre outras medidas. Não faria sentido é que se venha a adotar outras medidas que contrariem as três exemplificadas nos incisos docaput. Não é o caso da redução da jornada de trabalho, também prevista na mesmo artigo da LRF, mas em parágrafo, e que não contraria o sentido ou a direção do disposto no caput, nem mesmo nos incisos do artigo 23. Em termos fiscais, a medida prevista é que se reduza jornada de trabalhos e vencimentos de modo a produzir o mesmo efeito de reduzir o gasto por exoneração de servidores. A única e essencial diferença entre essas duas hipóteses está na temporalidade: a diminuição da jornada tem caráter temporário, enquanto as demissões têm caráter permanente, porque assim determina a Constituição.

Mais do que essas medidas, um efeito da economia, alheio ao ato do gestor, também pode promover o reenquadramento do limite: caso do aumento de receita que também produz o efeito de reduzir o excesso, pois, na forma definida pela LRF, o montante máximo de gasto com pessoal é fixado como uma porcentagem aplicada sobre a arrecadação efetivamente realizada.

Em tempos de recessão, com receita demasiado deprimida, e considerando que alguns entes federados têm estrutura etária muito elevada no corpo de seus servidores ativos e inativos, o espaço de ajuste fiscal pode ser pequeno, e isso pode até comprometer a prestação de serviços públicos básicos. Este não é um quadro hipotético.

Alguns governos estaduais já se enquadram nessa situação, por possuírem uma parcela muito importante de sua folha salarial comprometida com aposentadorias e pensões e, dentre os gastos com pessoal ativo, só uma parcela pequena compreendida por cargos e funções gratificadas (ainda mais se muitos forem ocupados por próprios servidores), e igualmente seja pequena a parcela de servidores não estáveis (como aqueles em estágio probatório)[3]. Mesmo na hipótese de o gasto ter crescido mais com inativos, e sendo eles preponderantes na folha, a correção do eventual excesso só pode ser feita em cima de servidores ativos, mesmo com estabilidade. Este raio restrito de atuação poderá vir a exigir demissões expressivas que afetem funções essenciais de governo – como no caso do ajuste se dar com exonerações de policiais, médicos e professores[4].  

Por último, importa mencionar ainda que o STF também suspendeu liminarmente a aplicação do parágrafo 1º do mesmo artigo 23 da LRF, o qual explicitava que a redução da despesa com cargos em comissão e funções de confiança, preconizada pelo inciso I do parágrafo 3º do artigo 169 da Constituição, poderia ser realizada tanto pela extinção dos cargos quanto pela redução dos valores.

Não se questiona aqui tal suspensão, por duas razões básicas. Primeiro, a Constituição determinou a redução da despesa com comissionados e não a exoneração de servidores, como previsto nas demais duas hipóteses. São determinações e atos bastante distintos. Segundo, para a administração pública corrente, não há qualquer impedimento legal no sentido de que o valor de uma comissão ou gratificação seja reduzido em qualquer situação. Tal medida pode ser adotada por um governo independentemente de ele ter ou não extrapolado o limite de despesas com pessoal fixado pela LRF.

A redução da despesa com cargos e funções, como primeira medida preconizada pela Constituição em caso de excesso de gastos com pessoal, pode e deve ser necessariamente atendida. Se for insuficiente, o que aqui se defende é que a redução do excesso remanescente possa ser alcançada não apenas por uma medida permanente, a demissão do servidor, mas também por uma medida temporária, a redução proporcional da jornada de trabalho e dos vencimentos. Como tal jornada é própria daqueles que têm emprego, não precisa nem deve ser aplicada aos detentores de cargos, mas é preciso que a LRF preveja e ofereça tal oportunidade, que passa por julgar improcedente a ação quanto ao parágrafo 2º do art. 23 da LRF.

Em conclusão, crise também é oportunidade, e uma de ouro é agora aberta ao STF, que pode reafirmar seu protagonismo recente em comandar a pauta e decidir as principais questões que marcam a federação brasileira. Além disso, em meio a mais grave crise econômica da história republicana brasileira, o STF pode dar uma contribuição decisiva para que os governos brasileiros possam enfrentar, de forma mais eficiente e também justa, os duros impactos da recessão sobre as finanças públicas.

Se confirmar a constitucionalidade da LRF e, ainda, se resgatar as regras cruciais para disciplina fiscal em tempos de recessão (a exemplo do parágrafo 3º do artigo 9º e do parágrafo 2º do artigo 23, suspenso em caráter liminar), o mérito será todo do STF.


[1] Ver síntese da medida cautelar em: http://bit.ly/2ed0cs3
[2] Lei Complementar 82, de 27/5/1995: http://bit.ly/2ecZH14
[3] O caso do governo estadual do Rio de Janeiro é emblemático. Considerada a folha de agosto de 2016, da administração direta mais indireta (sem empresas), segundo o Caderno de Recursos Humanos da Seplag, vejamos evidências para este debate do excesso de pessoal:
– o valor total da folha era de R$ 2,028 milhões, com 471,3 mil servidores;
– os servidores ativos não chegam a mais da metade: pesavam em 49,9% naquele gasto (R$ 1 bilhão) e 47,6% naquele contingente (224 mil ativos);
– somados os cargos em comissão e funções gratificadas, eram 9,257 postos e uma folha de R$ 31,6 milhões, equivalendo a 1,5% da folha estadual; ou seja, o corte constitucional mínimo de um quinto desse gasto significaria uma economia de apenas 0,3% da folha bruta ou R$ 6,3 milhões por mês;
– agregados contratos temporários, prestadores para tarifa certa e requisições externas, são somados 5,005 vínculos, que custam R$ 9,3 milhões por mês, equivalentes a 0,5% da folha global;
– aplicadas as duas primeiras medidas corretivas previstas constitucionalmente, significaria uma economia de irrisórios 0.8% da folha bruta, ou R$ 15,6 milhões; e
– como não se pode demitir aposentados e pensionistas e já deduzidos aquelas duas medidas, o espaço de ajuste composto pelos servidores ativos e estáveis equivale a 49.1% da folha bruta.

[4] Ainda tomando o caso do governo estadual do Rio de Janeiro como exemplo, importa considerar que há uma estranha prática contábil de atribuir tudo que se gasta com inativos apenas ao Poder Executivo e que em agosto último o gasto com pessoal do Executivo foi de 48,01% da receita corrente líquida (RCL), muito próximo do teto máximo de 49% ditado pela LRF.
Mantidas trajetórias recentes da folha e da receita, é possível que o mesmo índice chegue em dezembro a casa de 63% e assim seria constatado um excesso de 14% da RCL, o equivalente a R$ 6,6 bilhões – acumulados em 12 meses, ou, em media mensal, de R$ 550 milhões.
Depois de cortado um quinto da folha com cargos e exonerados todos não estáveis, a LRF ainda exigirá, nesse exercício hipotético, que o governo do Rio reduza em R$ 534 milhões sua folha mensal. Como a folha de ativos é de R$ 1,011 bilhões (já excluídos aqueles antes cortados), o excesso ainda a descoberto equivale a 53% dessa folha. Na hipótese impossível de serem demitidos 100% dos servidores ativos e estáveis das secretarias de segurança e de educação ainda não teria sido eliminado o excesso de gasto com pessoal projetado.

  •  

Luciano Felício Fuck é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, mestre pela Ludwig-Maximilians-Universität de Munique e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

José Roberto Afonso é economista, contabilista, doutor em economia pela Universidade de Campinas, mestre pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor do curso de mestrado do Instituto Brasiliense de Direito Público e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas. Coordenou a equipe técnica responsável do governo federal que elaborou o projeto de Lei de Responsabilidade Fiscal.

Revista Consultor Jurídico, 23 de outubro de 2016.

 
 

Fonte: sintracimento.org.br

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

cinco + 3 =