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Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Ladrilhos Hidráulicos, Produtos de Cimento, Fibrocimento e Artefatos de Cimento Armado de Curitiba e Região

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O que há por trás da reforma da previdência

Fala-se em ideologia da crise para promover a reforma da previdência 
por um motivo central: escondem-se as verdadeiras razões

                                

A reforma da previdência (PEC 287/2016) é uma das pautas centrais na modificação do papel do Estado promovida pelo governo de Michel Temer, que somente não foi levada a votação pelo Congresso Nacional por se estimar uma derrota. A reforma da previdência é mais um exemplo dos efeitos político-jurídicos da ideologia da crise.

Por Rene José Keller

                            

Em nome da crise econômica, justifica-se a adoção de medidas drásticas, não por acaso relativas ao cerceamento de direitos. Basta lembrar a aprovação relâmpago da reforma trabalhista e da PEC 241/55, que limita os gastos públicos por vinte anos. Aqui, recorda-se de um dos conceitos mais interessantes da obra marxiana[1], já que a ideologia nesta acepção significa a apresentação dos interesses de uma classe como se fossem comuns aos membros de toda a sociedade. 

A tentativa do governo federal é sedimentar a ideologia de setores específicos que defendem a reforma da previdência, com ingentes gastos publicitários, a fim de demonstrar que é pelo interesse de todos. O governo, por meio dos seus ministros, faz todo o tipo de chantagem para convencer a população da necessidade da reforma, apontando que o país enfrentará nova crise em 2019, que o risco Brasil subirá para os investidores, que haverá alta dos juros, aumento da inflação, queda da renda da população. Deixou apenas de mencionar que para aprovar a reforma, o governo já despendeu R$ 43 bilhões, a fim de agradar setores da classe dominante da sociedade. Ou seja, para aprovar a reforma (alegadamente) para os pobres, agrada-se os ricos.

Fala-se em ideologia da crise para promover a reforma da previdência por um motivo central: escondem-se as verdadeiras razões. Passa à margem da discussão que o intento final do liberalismo econômico, no seu viés libertário, é fazer com que as pessoas provenham os seus direitos de forma individual, sem recorrer ao Estado para supri-los. A via intermediária é o fornecimento público pela via privada (ex. as consultas médicas em clínicas particulares com recursos públicos, ou o financiamento público em instituições de ensino privadas). Ainda que essa premissa possa eventualmente parecer absurda, já está em curso tal projeto político, que favorece a ampliação das esferas de acumulação de capital sobre os direitos, apresentando os traços distintivos que não se analisarão na sua veste neoliberal (governo Temer) e neodesenvolvimentista (Lula e Dilma).

Antes de adentrar em detalhe na reforma da previdência, cabe lembrar que grande parte da esquerda brasileira, até mesmo da direita, foi pega de surpresa com a proposição, pelo governo de Michel Temer, da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 241/55, aprovada (Emenda Constitucional nº 95/2016) para limitar os gastos públicos primários do governo federal, inclusive os relativos a ensino e saúde. Não se sabia ao certo, como até hoje não está esclarecido, de onde teria partido essa medida ou com base em que fora pensada.

O que se negligenciou no debate é que se trata da aplicação pura e simples dos ditames da ortodoxia liberal da Escola de Chicago, preconizada por Milton Friedman e Rose Friedman, na obra “Livre para Escolher”. Os autores propõem limites aos gastos públicos federais por meio de emendas, tal qual adotada no Brasil, a fim de restringir o orçamento do governo: “isso acabaria com a tendência de um governo cada vez maior, não haveria reversão. […] Uma redução gradual de nossa renda que o governo gasta seria uma contribuição importante para uma sociedade mais livre e mais forte”.

O congelamento dos gastos públicos em âmbito federal, seguindo a ortodoxia liberal, tem uma repercussão direta para o modo pelo qual as pessoas acessam os mais variados direitos sociais, inclusive os relativos à previdência. Ao invés do seu fornecimento ocorrer por meio do Estado, que obtém receita derivada (tributos) para custeio, a limitação de gasto com o aumento populacional fará com que as pessoas passem a “adquirir” os direitos pela via do mercado, como qualquer outra mercadoria.

Em termos de economia política, trata-se do fenômeno da precificação ou mercantilização dos direitos, em que estes deixam de ser ofertados como valor de uso e passam a ser assimilados como valor de troca. Toda mercadoria possui um valor de uso à medida que possui alguma utilidade condicionada pelas propriedades do seu próprio corpo. Uma mesma mercadoria pode ter mais de um valor de uso, como um carro, por exemplo, que pode servir como meio de transporte, ou para deleite de um colecionador, podendo servir para demonstrar aos demais o potencial de riqueza etc.

O valor de troca, ao seu turno, está ligado à quantidade de dinheiro necessária para se obter o valor de uso do bem, expresso em termos dos custos reais de produção mais o lucro, abstraindo-se, aqui, para fins didáticos o papel do valor (que difere do valor de uso e de troca). Quando o Estado fornece determinado direito por meio das políticas públicas, os usuários acessam os direitos apenas sob a veste de valor de uso. Isto é, quem se gradua em uma instituição de ensino pública acessou o bem “educação” apenas sob a veste do valor de uso, da utilidade levando em conta o interesse do Estado na formação, no entanto, sem ser tratado o direito como valor de troca.

Por outro lado, quando o acesso a determinado direito ocorre pela via concorrencial privada, o bem é obtido a partir do seu valor de troca, abrindo espaço à acumulação privada de capital sob a esfera dos direitos. Com isso, há um processo em curso de privatização ou mercantilização dos direitos que, com a sua precificação, passam a ser fruídos com base no seu valor de troca. O reflexo dessa equação é que o ditame liberal de garantia dos direitos pela via individual privada exime o Estado do seu fornecimento, mercantilizando um bem que deveria ser alcançado apenas como valor de uso por mandamento legal.

O projeto da reforma da previdência, tal qual originariamente apresentado, demandaria do trabalhador o mínimo de 25 anos de contribuição para acessar à aposentadoria por idade. A aposentadoria por tempo de contribuição, ao seu turno, demandaria 40 anos de contribuição, além da idade mínima de 65 anos para ambos os sexos. Na prática, portanto, muitos trabalhadores efetivamente contribuirão por um longo período sem que tenham qualquer retorno quando tiverem a sua capacidade de trabalho reduzida por conta da idade.

Sendo a previdência oficial não atraente, abre-se o espaço para um mercado até então pouco desenvolvido de previdência privada. Basta, após a aprovação da reforma da previdência, que se edite uma legislação específica que não obrigue o trabalhador a se vincular à previdência do INSS, para que haja a abertura do mercado da previdência privada à grande massa dos trabalhadores brasileiros.

O resultado nefasto desse processo é que, uma vez subtraído o incentivo estatal, restará a obtenção do direito exclusivamente pela via concorrencial privada, sendo o direito tratado como valor de troca. Sendo obtido como valor de troca e, portanto, comprado individualmente, seu acesso ocorrerá à medida que o trabalhador, ou seus familiares, consigam vender a sua força de trabalho por quantia suficiente para suportá-lo. Não sendo o caso, o tratamento dos direitos como valor de troca, em detrimento do seu fornecimento como valor de uso, repercutirá na própria negação do direito e, portanto, do seu valor de uso.

O debate que está no pano de fundo da reforma da previdência é do papel que o Estado deve ocupar em relação aos direitos e à satisfação das necessidades da população. O objetivo do atual governo, como afirma David Harvey (2016, p. 33) é “abrir essas áreas para à acumulação de capital privado e à primazia do valor de troca”. A lição que se pode extrair é que se deixar a iniciativa privada ser responsável pela provisão da previdência, inserindo-a dentro de uma das contradições do capital entre valor de uso e de troca, não se esqueça que isso pode representar a própria negação do direito, sedimentando-se a ideologia da aquisição individual pelo mercado.

               

Referências

ALVES, Giovanni. Trabalho e Neodesenvolvimentismo: Choque de capitalismo e degração do trabalho no Brasil. Bauru: Canal 6, 2014.

FRIEDMAN, Milton. FRIEDMAN, Rose. Livre para Escolher: Um depoimento pessoal. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2015.

HARVEY, David. 17 Contradições e o Fim do Capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2016.

LEITÃO, Matheus. PGR Questiona no STF gastos do governo com propaganda sobre reforma da Previdência. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/blog/matheus-leitao/noticia/pgr-questiona-no-stf-gastos-do-governo-com-propagandas-sobre-reforma-da-previdencia.ghtml. Acesso em 09 de jan. 2018.

MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

MARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2014.

PAULA, Renato Francisco dos Santos. Estado Capitalista e Serviço Social: O neodesenvolvimentismo em questão. Campinas: Papel social, 2016.

VALOR ECONÔMICO. Barganha pela Reforma da Previdência Custará R$ 43 bi, diz jornal. Disponível em: http://www.valor.com.br/politica/5222007/barganha-pela-reforma-da-previdencia-custara-r-43-bi-diz-jornal. Acesso em 09 de jan. 2018.

WIZIAKI, Julio; CARNEIRO, Mariana. Ministério Prevê Recessão se Reforma da Previdência Não Passar. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/11/1938399-ministerio-preve-recessao-se-reforma-da-previdencia-nao-passar.shtml. Acesso em 09 de jan. 2018.

MARX, 2007, p. 48.

Estima-se que o gasto chegou a cem milhões de reais. CF. (LEITÃO, 2017).

WIZIACK; CARNEIRO, 2017.

Além de cargos, haverá o impacto nas contas públicas federais do montante citado em virtude do parcelamento de dívidas dos produtores rurais, de dívidas de empresas com o Simples nacional, renúncia de receita para prefeitos e governadores etc. (VALOR, 2017).

Em se tratando do ensino superior, os programas criados e mantidos ao longo dos governos Lula e Dilma (PROUNI, PRONATEC), período denominado de neodesenvolvimentismo (ALVES, 2014, p. 149-150) ou neoliberalismo à brasileira (PAULA, 2016, p. 280), representam essa fase de transição para a garantia dos direitos pela via concorrencial privada. Ainda que, em um primeiro momento, aumente o número de pessoas que acessam o bem, o Estado o custeia pela via indireta concorrencial. Não se negligencia a criação de universidades públicas por tais governos, ocorre que, a grande expansão do ensino ocorreu na seara privada, inclusive na modalidade à distância.

FRIEDMAN; FRIEDMAN, 2015, p. 429. Na indigitada obra consta até mesmo o modelo de Proposta de Emenda Constitucional a ser apresentada, sendo a diferença básica entre a que foi aprovada no Brasil e a defendida pelos Friedman o índice de reajuste. Enquanto a proposta deles para os Estados Unidos da América o orçamento deveria ser corrigido pelo Produto Interno Bruto, no Brasil optou-se pelo índice de inflação.

MARX, 2014, p. 113-123.

HARVEY, 2016, p. 29.

 

*Rene José Keller é doutorando em Direito, na linha de “Teoria e Filosofia do Direito”, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutorando em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Bacharel (PUCRS) e Mestre (UCS) em Ciências Jurídicas e Sociais

                

Fonte: Vermelho, 05 de fevereiro de 2018

 

Fonte: sintracimento.org.br

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