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Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Ladrilhos Hidráulicos, Produtos de Cimento, Fibrocimento e Artefatos de Cimento Armado de Curitiba e Região

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Regra de transição adotada pela PEC da Previdência é injusta e irrazoável

OPINIÃO

Por  e 

Jair Bolsonaro assumiu a condução do Poder Executivo do nosso país. Muitas expectativas positivas, muitas promessas e muitos compromissos foram veiculados publicamente. Dentre eles, a proposta de emenda constitucional que prevê nova reforma da Previdência, apresentada nesta quarta-feira (20/2) e que recebeu o número 6/2019[1].

Propostas veiculam percursos possíveis, pois muitos caminhos de futuro sempre são admissíveis. Cabe uma avaliação jurídica da proposição, ainda que sumária e sujeita a revisão, pois a Previdência Social é matéria fundamental complexa, que convoca a avaliação de diversas disciplinas teóricas.

No campo jurídico pouco avançamos com o debate público sobre se a Previdência brasileira é deficitária em termos financeiros ou atuariais ou não. Esse debate é sobretudo econômico e suas conclusões são predeterminadas pelas premissas temporais, jurídicas e contábeis das quais se vale. Limitado a esse aspecto, trata-se de debate improdutivo porque cada uma das vozes em confronto emprega parâmetros de cálculo próprios, incluindo ou excluindo receitas ou despesas passadas ou a consideração de parte do valor presente de despesas futuras para fundamentar a sua orientação. É também uma abordagem binária e simplificadora, pois há problemas de equidade contributiva intertemporal, justiça entre gerações, proteção à confiança e respeito ao direito constitucional transitório precedente, que não encontram resposta em uma simples análise da receita-despesa ou de financiamento atual dos regimes.

Estudioso algum do tema previdenciário recusa a necessidade de uma ampla reforma no sistema previdenciário — aliás, isso é uma necessidade também em face do descaso dos últimos governos com o financiamento do sistema, vítima frequente de programas de redução de contribuições patronais, irresponsabilidade fiscal e indução de novos e antigos servidores à migração para o sistema de previdência complementar, reduzindo a contribuição de agentes aos regimes próprios de Previdência, sem qualquer compensação — mesmo virtual — aos antigos contribuintes do sistema, que nele aportaram contribuições por décadas.

Importante também que qualquer reforma reduza ou elimine a diferença que sempre marcou o regime geral e os regimes próprios dos regimes especiais de segurança social, como os dos militares e dos políticos, independentemente da nomenclatura que recebam. E a transição nesses casos também não deve ser diversa da aplicada aos demais agentes. Essa redução de desigualdades e prerrogativas especiais, muitas vezes genericamente fundamentadas, mas atuária e financeiramente insustentáveis, é uma reforma que a sociedade espera ansiosa.

Por igual, é atitude de justiça, quando se impõe responsabilidade a todos, aperfeiçoar amplamente o sistema de fiscalização e cobrança dos grandes devedores da Previdência e fechar a torneira das fraudes. Cobrar dívida previdenciária no Brasil é dificílimo, já que as postergações dos devedores são infinitas, além de existirem instrumentos legais que prestigiam o mau pagador. Logo, o que se espera é a imposição de novos mecanismos que agilizem a recuperação de todos os créditos públicos, já que a Lei de Execução Fiscal, de 1980, é totalmente obsoleta.

Feitos esses comentários introdutórios resta apreciar a compatibilidade da regra de transição da PEC 6/2019, intitulada de reforma da Previdência, com a lei maior, especificamente com o artigo 60, parágrafo 4º.

A aposentadoria por tempo de contribuição no regime geral de Previdência deixará de existir com o final da fase de transição, certo que para esta fase foram eleitos três critérios que exigem tempo de contribuição e, também, idade. A primeira regra de transição prevista conjuga o tempo de contribuição com a idade do trabalhador, ou seja, uma reprodução da regra vigente 86/96. A segunda regra de transição, por sua vez, exige uma idade mínima que iniciará em 61 anos para homens e 56 para mulheres e chegará a 65 e 62 anos, respectivamente, que deve ser conjugada com o tempo de contribuição mínimo de 30 anos para as mulheres e 35 anos para os homens. Por fim, a terceira regra de transição prevista estipula uma regra especial para quem está a dois anos de cumprir o tempo de contribuição mínimo para a aposentadoria, com pedágio de 50% sobre o tempo faltante, neste último caso dispensando-se requisito etário.

Importante, ainda, consignar que os segurados que se aposentarem pelas regras de transição deverão receber 100% da média dos salários de contribuição, enquanto a nova regra prevê redução significativa da renda mensal inicial dos benefícios, podendo chegar a 100% apenas se passar de 40 anos de contribuição, ou seja, de fato será uma corrida contra o tempo para garantir o direito de se aposentar com base na norma antiga.

No regime próprio de Previdência Social[2] foi eleito um critério de idade mínima que começa em 56 para as mulheres e 61 anos para os homens, passando em janeiro de 2022 para 57 e 62. Somado ao requisito etário, haverá necessidade de o servidor preencher os 86 pontos para mulheres e 96 para os homens, sendo acrescido de um ponto por ano a partir de janeiro de 2020, até o limite de 100/105 pontos. Há uma previsão específica que passa a exigir 20 anos de efetivo exercício de serviço público, mantendo-se a exigência de cinco anos no cargo em que se dará a aposentadoria.

Em apertada síntese, eis a essência das principais regras de transição.

Verifica-se que a regra de transição não contempla um simples período adicional proporcional, popularmente denominado de pedágio, buscando assegura a proteção da confiança de quem tem muitos anos de contribuição e pouca idade, prejudicando aquele que ingressou jovem no mercado de trabalho e contribui há mais de 25 ou 30 anos e que planejou sua vida previdenciária. Essas pessoas estão sujeitas a um regime de transição desde a Emenda Constitucional 20/98, alterada pela Emenda Constitucional 41/2003[3], as quais empregaram o chamado pedágio para aposentadoria como regra de transição, certo que o critério eleito pelo poder constituinte reformador foi de 20% do tempo que da data da promulgação de emenda faltaria para atingir o limite (artigo 9º, parágrafo 1º, “b” da Emenda Constitucional 19/98 e artigo 2º, III, “b”, da Emenda Constitucional 41/2003).

Algumas dessas pessoas estão há cinco ou dez anos da aposentadoria e merecem respeito à confiança, posto que algumas estão sujeitas a regime de transição há 21 anos, aproximadamente. Regras de transição são normas de passagem, pontes temporais que se esgotam com o implemento da situação que regulam. O legislador reformador não pode alterar ou suprimir regras de transição por meio de novas regras de transição posteriores, sobretudo sem considerar — proporcionalmente — a eficácia passada da norma de transição implementada.

Como um dos autores deste breve texto antecipou, em artigo escrito no início de 2017:

As disposições transitórias — como normas excepcionais e provisórias — cumprem o papel de pacificar e conciliar expectativas em sucessões normativas, assentando em marcos temporais precisos o planejamento de indivíduos, agentes públicos e econômicos. Se não há certeza sobre a vigência no tempo de normas constitucionais transitórias, como é possível projetar o futuro? Por isso, caracteriza forma qualificada de deslealdade normativa a alteração retroativa (aditiva, modificativa ou revogadora) ou retrospectiva (sobretudo em relações de longa duração) de norma constitucional transitória”[4].

Se o reformador o faz, viola a segurança jurídica de modo grave e inconstitucional. É dizer: no mínimo, em situações de transição, a PEC 6/2019 deveria adotar pedágio proporcional ao tempo que falta para os agentes preencherem todos os requisitos à aposentação.

Portanto, sem a adoção de parâmetros de proporcionalidade claros, temos que a regra de transição adotada pela proposta de emenda à Constituição da Previdência é injusta e não razoável, violando o princípio da proteção da confiança, um dos elementos da segurança jurídica, essencial no Estado Democrático de Direito, que possui dimensão tanto institucional como individual, afigurando-se direito e garantia fundamental (artigo 60, parágrafo 4º, IV da Constituição). As normas de transição da PEC 6/2019 devem sofrer ajustes e adaptações para respeitar tais mandamentos.

É imprescindível a proteção do princípio da confiança, daquelas pessoas que contribuem há dez, 20 e 30 anos, aliás, essa é a lição da doutrina de Ingo Wolfgang Sarlet:

“Valendo-nos do exemplo da alteração das regras para aposentadoria e pensões — quanto mais alguém estiver contribuindo num regime de aposentadoria, maior deverá ser a sua segurança jurídica já que mais merecedora de proteção da sua confiança, o que, por sua vez, deverá ser observado no âmbito das regras de transição, a serem estabelecidas pelo legislador. Resulta inadmissível, neste sentido, alterar as regras vigentes, ainda que mediante a ressalva dos direitos adquiridos, da mesma forma para quem estiver contribuindo — e, portanto, confiando — há dois anos, há vinte anos ou mesmo há trinta anos, pois é evidente que diversa a intensidade da confiança depositada pelo cidadão individualmente considerado (no sentido subjetivo) bem como diferente o dever de respeito a essa confiança. Que tais questões — consoante já frisado — nos remetem novamente ao princípio da proporcionalidade, mas também dizem com o princípio da isonomia, que igualmente devem ser observados neste contexto[5].

O repórter José Luiz Datena foi até a casa do presidente Jair Bolsonaro no dia 5/11/2018[6] e lá obteve o seu compromisso em termos da reforma previdenciária, nos seguintes termos:

Todo mundo diz que nós devemos honrar os nossos contratos, não é isso, nós temos um contrato com o aposentado, com quem está na iminência de se aposentar e com quem está trabalhando, você vai mudar uma regra no meio do caminho, então você não pode simplesmente mudar sem levar em conta que tem um ser humano que está ali e que vai ter a sua vida completamente modificada. (…) fazendo acertos de forma gradual, você atinge o mesmo objetivo sem colocar em risco e sem levar pânico à sociedade.

Portanto, esperamos que exista coerência entre o discurso e a ação, garantindo-se voz aos segmentos da sociedade que serão impactados pela reforma que se avizinha, garantindo-se voz à sociedade e a seus representantes, garantindo-se a formação de uma cognição exauriente dos agentes políticos envolvidos e garantindo-se regras de transição proporcionais e justas, que respeitem o princípio da proteção da confiança. Enfim, honrando-se a palavra empenhada, não há o que se temer e certamente alcançaremos uma reforma previdenciária efetiva e justa, à altura do nosso tempo.


[1] PEC 6/2019, disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2192459, acesso em 20/2/2019.

[2] Não abordaremos, diante dos limites deste trabalho, as regras de transição dos policiais e demais carreiras com regime especial que há previsão especial na PEC em comento, mas que sofre das mesmas injustiças.

[3] “Desde 1998, a previdência dos agentes titulares de cargo público foi alterada por sucessivas emendas constitucionais (EC nº 20/1998, EC nº 41/2003, EC nº 47/2005, EC nº 70/2012, EC nº 88/2015), normas infraconstitucionais e um número expressivo de atos regulamentares”, MODESTO, Paulo, Disposições constitucionais transitórias na reforma da previdência: proteção da confiança e proporcionalidade, R. bras. de Dir. Público – RBDP | Belo Horizonte, ano 15, n. 56, p. 9-54, jan./mar. 2017. Disponível na internet: http://bit.ly/reformaprevidenciatransicao.

[4] Modesto, Paulo, idem, http://bit.ly/reformaprevidenciatransicao.

[5] Eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro, Revista Latino-Americada de Estudos Constitucionais nº 6, julho/dezembro de 2005, p. 366-367, grifo nosso.

[6] A partir de 1:05:00 em https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=GaZkVYEXyJ8, acesso em 20/2/2019.

 

 

 é procurador do estado de São Paulo, professor do mestrado em Direito da Unaerp e doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP.

 é presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público, professor de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra e membro do Ministério Público da Bahia.

Rafael Miranda Gabarra é advogado especializado em Direito Processual Civil e Previdência Social.

Revista Consultor Jurídico, 25 de fevereiro de 2019

 

Fonte: sintracimento.org.br

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