O retorno da dor
"Um povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la", alertava o filósofo irlandês Edmund Burke ainda no século XVII.
Na Europa do século XX, a violência foi um importante instrumento da disputa política. Itália e Alemanha enfrentavam agudas crises sociais e econômicas, quando grupos autoritários se organizaram e aglutinaram setores da sociedade para assim conduzirem os respectivos países sob a égide da violência.
Para o sucesso de tal prática, o jurista Carl Schmitt, contemporâneo do nazismo, estruturou um sistema político partindo do conceito de soberania, promovendo o culto à identidade cultural e ao nacionalismo como elementos capazes de delimitar a extensão e a intensidade da soberania nacional. De modo a garantir a eficácia deste conceito, fez-se necessária a identificação de um inimigo: aqueles que mereceriam serem perseguidos e combatidos por serem considerados um risco à essa soberania. Foi assim que os horrores das torturas, mortes, e campos de concentrações receberam uma base teórica para serem usados pelo Poder Público à época.
Superada a 2ª Grande Guerra, o mundo debruçou-se sobre as barbáries humanas praticadas e estabeleceu marcos civilizatórios para impedir que retrocessos vividos voltassem a ocorrer. Neste contexto surgiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, cujo foco era – e ainda é – promover a paz e a democracia no mundo.
O passado é uma baliza para decisões e aprendizados futuros. Em momentos de instabilidade característicos do desenvolvimento cíclico do capitalismo, seja pela escassez financeira ou de alternativas políticas, o egoísmo e a intolerância humana afloram como soluções rápidas e simples para a resolução dos acentuados conflitos.
Infelizmente estas características são predominantes hoje em diversos países – dos quais o Brasil não escapa – envoltos em uma onda conservadora mundial amparada no discurso da perseguição aos inimigos.
Em tempos de crises – econômicas, políticas, institucionais, éticas – deterioram-se as relações humanas, e a violência renasce como alternativa de nos proteger dos supostos inimigos que ameaçariam qualquer privilégio que se encontre sob risco. Não percebemos, no entanto, que tais crises são geradas pelo gigante e dissimulado sistema produtivo capitalista.
Na mesma proporção que este ambiente desértico propicia o crescimento de líderes autoritários, estes se apropriam do apoio para cultivarem a violência, seja com palavras, atos ou gestos, justamente por ter sido também um tipo de violência que lhes conferiu tamanha influência. Como já vimos num passado não mais tão recente, esta dinâmica se insere numa engrenagem que pode nos levar a episódios trágicos na história da humanidade.
É justamente, neste ambiente, conduzido por um discurso autoritário, com seus inimigos bem delimitados, utilizando-se da violência em toda as suas dimensões como panaceia para os problemas sociais, que o Brasil se encontra.
Em que pese a pujança socioeconômica vivenciada pelo país durante o início do século XXI, ainda temos um passado marcado por longos períodos de colonialismo, escravidão e ditadura militar.
Se em 2008 o brasileiro era o povo mais otimista do mundo, de acordo com pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas, em 2018 nós nunca fomos tão infelizes, segundo pesquisa de opinião da Gallup.
No Brasil atual, o inimigo é a cultura periférica, os pobres, os negros, LGBTs e mulheres – com números repugnantes e assustadores já no início do ano, fazendo do Brasil o 5º país mais perigoso no mundo para elas.
No Rio de Janeiro, em 2008 a polícia já era considerada a que mais mata no mundo, e em 2018 esses índices atingiram níveis históricos que estão sendo superados em 2019. Apenas em fevereiro já foi alcançada a média de 5 homicídios por dia.
É neste contexto que, desde a última eleição presidencial, o símbolo da arma é aquele que melhor representa nosso país atualmente. A repetição deste gesto, impulsionado por representantes do povo, contribui para a legitimação do uso indiscriminado deste instrumento.
Ora, se não alterarmos alguns de nossos hábitos e, principalmente, nossos líderes não compreenderem que estão promovendo uma cultura da violência, episódios estarrecedores como o massacre de Suzano e o elevado número de mortes daqueles delimitados pelo Estado como inimigos continuarão a acontecer.
Numa data tão dolorida como o 31 de março, a qual deveria servir para fortalecermos os valores da democracia, solidariedade e respeito, notamos manifestações promovidas pelo presidente Jair Bolsonaro indo em direção oposta a tudo aquilo que o mundo e a civilização compreendeu dos períodos autoritários vividos na época da ditadura. Os constantes elogios a ditadores e torturadores pelo presidente da República agridem nossa memória e distorcem nossa capacidade de reflexão para superação de mazelas no futuro.
Não são muros que nos garantirão a liberdade. Não é com violência que alcançaremos paz.
*Vitor Marques é advogado, ex-secretario municipal de juventude do PT, hoje na coordenação do setorial jurídico do partido.
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Fonte: sintracimento.org.br