Existe ‘criança feliz’ com pais desempregados, com fome e sem saúde?
O fato de o programa “Criança Feliz” receber algum elogio, se visto isoladamente, não reduz seu papel tóxico na destruição da rede de serviços sociais e da educação infantil.
O Programa Criança Feliz, iniciado no governo Temer e continuado no governo Bolsonaro, como qualquer ação na área social, deve ser avaliado dentro do contexto em que é implementado. E o contexto em questão é marcado pelo severo desemprego e o desmonte dos sistemas públicos de proteção no Brasil, expresso no desfinanciamento da educação, e da saúde e assistência social, tornando as políticas públicas inócuas frente ao aumento da pobreza e da fome em todo o país.
O desenho do programa, rejeitado pelas instâncias deliberativas da política de assistência social, limita-se à contratação de um exército de “agentes sociais”, sem formação profissional especializada, sendo a maioria com nível médio, constituindo-se um programa de visitação social, sem nenhuma articulação com serviços públicos de promoção e proteção integral às crianças pequenas.
Do ponto de vista metodológico, as visitas às famílias são estéreis, restringindo-se a algumas orientações sobre estímulo e cuidados básicos, sem a existência de qualquer protocolo e/ou fluxo que assegure mecanismos de referências intersetoriais para o atendimento integral às necessidades das crianças, das famílias ou mesmo dos ambientes onde vivem
Entre equívocos conceituais e metodológicos em relação ao trabalho social com famílias, o projeto apresenta vários problemas:
1) Parte do princípio de que é melhor a criança ficar em casa com a mãe do que ir para uma creche ou equipamento de educação infantil. Na verdade, é mais barato (por isso caiu nas graças dos liberais de plantão), mas é pior para a criança, que na creche teria acesso a outros cuidados, direitos, comida, socialização etc.
Também é pior para a mãe que fica impedida de trabalhar e tomar suas decisões limitando sua atividade aos cuidados dos filhos. No caso da maioria das famílias pobres, isso implica em ter familiares com baixa escolaridade como cuidadores desta criança, e limite às possibilidades de renda e rompimento de padrões de pobreza.
2) O desmonte dos programas de creches e os cortes na educação tornam esse esforço inócuo. Se o Criança Feliz fosse um plus (uma ação adicional às garantias de serviços universais de saúde, educação, assistência social, ao direito à alimentação e qualificação dos espaços públicos favoráveis ao brincar), poderia ser considerado, mas ele tem se mostrado crescentemente um paliativo à destruição da rede de proteção social garantida pela Constituição Federal de 1988.
3) Vai na contramão da garantia de serviços de qualidade que deveriam contar com profissionais formados e com serviços continuados, como os ofertados no Suas (Sistema Único de Assistência Social), a educação infantil e os agentes comunitários de saúde.
O fato de o programa receber algum elogio, quando visto isoladamente, não reduz seu papel tóxico na destruição da rede de serviços socioassistenciais e da educação infantil, tornando válida a pergunta: pode ser feliz a criança com pais desempregados e sem renda, com fome, sem saúde, sem educação infantil, sem proteção social? Enquanto isso, mais de um milhão de crianças aguardam desesperadas que suas famílias sejam incluídas no Bolsa Família.
Tereza Campello é doutora por Notório Saber em Saúde Pública e economista. Foi ministra de Desenvolvimento Social e Combate a Fome no governo Dilma Rousseff, pesquisadora associada à Universidade de Nottingham, Reino Unido
Ieda Castro é assistente social, doutora em Política Social, mestra em Educação Brasileira. Foi secretária Nacional de Assistência Social do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS)
Vermelho
Fonte:sintracimento.org.br