Contra a Covid-19, não há direitos?
OPINIÃO
O título é uma provocação. Trata-se de um trocadilho de uma frase que estava escrita numa placa na entrada do Doi-Codi de São Paulo, na década de 1970, que tinha os seguintes dizeres: “Contra a pátria, não há direitos”. Aos poucos, especialmente depois da inédita sentença de condenação da União, em decorrência da morte do repórter Vladimir Herzog, mostrou-se que há limites para o exercício do poder soberano do Estado.
A redemocratização do Brasil trouxe consigo a consagração do constitucionalismo e a teoria dos direitos fundamentais, que, segundo aprendemos, é o núcleo intangível da Constituição representativo dos valores mais caros da sociedade, não sendo passíveis de supressão ou alteração sequer por emenda constitucional. É um limite ao arbítrio, tão cobrado para a superação do período anterior ou pelo menos deveria ser.
A referência, no título do ensaio, ao governo dos militares, tido como revolucionário por uns ou como golpistas por outros, é também outro assuntos que voltou a ser revisitado, seja pela tentativa de implementar uma justiça de transição no Brasil, obstada por decisão do STF na ADPF 153, seja pela eleição democrática de 2018, que legitimou, como mandatário máximo, um representante que, dentre suas virtudes, está a transparência de suas posições e opiniões, gostemos delas ou não, inclusive sobre o período militar, que cessou com a Constituição de 1988, que rege o país desde então.
A Constituição revelou-se, naquela eleição, a mais pluralista possível, albergando o respeito à liberdade de expressão e de pensamento. Mas, a Constituição tem sua maior importância, inclusive nos períodos acentuados de crise, na defesa de posições contramajoritárias, que nem sempre estão de acordo com o discurso do “politicamente correto. Aliás, o professor Elias Thomé Saliba, titular de História da USP, ensina que “(o politicamente correto) é uma criação ideológica característica de sociedades que perderam o norte dos padrões morais e acabaram por impor regras casuísticas tópicas, que só conseguem estabelecer limites arbitrários. Batizado com outros nomes ou disfarçado de alguma forma de censura, o ‘politicamente correto’ sempre existiu em sociedades que viveram momentos distópicos, quando a ausência de cenários futuros deixou de ensejar padrões morais estáveis. O resultado é um moralismo nervoso que se manifesta aqui e ali, meio esquizofrênico, tópico, que não sabe bem a que veio e, na história, nunca resultou em boa coisa”
A Constituição, por mais incrível que possa parecer, agora sofre sua maior ameaça, que não decorre de uma crise política, mas de uma causa biológica: o coronavírus, patógeno invisível que afetou o equilíbrio federativo e as relações de poder. As medidas adotadas em âmbito regional e local, segundo pesquisas, encontram apoio popular majoritário[1], que mostram que as maiorias se formam ocasionalmente e, por isso mesmo, não são o porto seguro para adoção de medidas requeridas pela crise.
Chamou a minha atenção o fato de o presidente da República Jair Messias Bolsonaro, nessa sexta-feira da paixão, passear pelas ruas da capital federal, sendo massivamente criticado pela imprensa, que o classificou como delinquente social e irresponsável[2], diante das regras de governadores de estados que limitam a liberdade das pessoas e a atividade econômica. Mas, apesar da crítica ferrenha, outro fato despertou a minha atenção a frase do presidente: “Ninguém vai cercear meu direito de ir e vir”.
A meu ver, a Constituição Federal, na qual se devem buscar as soluções sobre a crise, estava ao seu lado.
O gesto do presidente, evidentemente, tem significados políticos. Mas, sua frase e, mais do que ela, seu direito, sob o ponto de vista jurídico, que é o objeto de minhas reflexões, se ampara na tradição jurídica secular, da Carta Magna de João Sem Terra, às Revoluções Francesa e Americana. A Constituição precisa ser respeitada e somente a partir dela é que se constroem soluções para a crise.
Entre direitos, deveres e desejos, a Constituição é o caminho necessário. Mas não é o que está se passando.
Embora se diga, sem maiores reflexões, que situações excepcionais devem ser tratadas de forma excepcional, não se pode perder de vista que a solução para a crise e os desafios jurídicos que ela provocou devem ser encontrados na centralidade da Constituição no sistema jurídico. Atualmente, o remédio constitucional para a emergência é o estado de defesa e o estado de sítio (artigos 136 e 137 da CF), a menos que seja criado um novo regime de exceção, um estado de pandemia, o que novamente depende da iniciativa qualificada de lei, no caso, um projeto de emenda à Constituição.
A liberdade de ir e vir (artigo 5º, XV, da CF) e as obrigações de fazer ou deixar de fazer determinado comportamento (artigo 5º, II, da CF), são uma conquista histórica sobre o arbítrio. Segundo o professor André de Carvalho Ramos[3] “essa sintonia entre liberdade e, legalidade é fruto da consagração do Estado de Direito. Fica superada a submissão de todos à vontade dos monarcas, substituída pela vontade da lei”.
A Lei da Quarentena, a Lei 13.979/2020, permitiu o isolamento e quarentena no Brasil. Mas a lei permite apenas, no isolamento, a “separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus” e, na quarentena, franqueia a “restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus”. Essa é precisamente a base legal nacional da quarentena capaz de validamente obrigar as pessoas e autoridades a fazer ou deixar de fazer algo.
Na crise brasileira de 2020, decorrente da pandemia do coronavírus, a vontade do monarca parece substituída pela vontade dos governadores e prefeitos.
Não há lei que impeça a liberdade ambulatorial das pessoas, a limitação ao direito de reunião ou a intervenção da propriedade e interrupção de atividades econômicas, matéria relativa ao direito civil, comercial, desapropriações, requisições civis, que são assuntos de competência da União (artigo 22, I à III, da Constituição), que podem ser delegadas aos Estados, em questões específicas, mediante leis complementares sobre o assunto, que ainda não existem, conforme parágrafo único do artigo 22 da Constituição. A ausência de lei não é suprida sequer por leis locais, mas por decretos. Na crise brasileira de 2020, decorrente da pandemia do coronavírus, a vontade do monarca parece substituída pela vontade dos governadores e prefeitos.
Do ponto de vista jurídico, portanto, o comportamento do presidente estava protegido pelo artigo 5º, XV, da Constituição, direito fundamental, como diversos outros conflitos que têm surgidos nos Estados, que, certamente, terão um custo jurídico e econômico futuro.
A inexistência de lei remete a um conflito federativo, cujo vácuo foi permeado por inúmeros decretos que tratam desses temas, a pretexto de cuidarem de matéria da competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Diga-se de passagem que a competência para legislar sobre “proteção e defesa da saúde” (artigo 24, XII, da CF), que não interferem na função executiva (ADI 2.730) e, portanto, pode ser de iniciativa dos parlamentares, do presidente da República e, em sua omissão, objeto de ADI por omissão pela PGR e demais legitimados.
A bagunça generalizou-se.
Tomando como exemplo o Rio de Janeiro, notei que houve o cuidado, no primeiro decreto, de recomendar condutas, as chamadas sanções premiais, diante da impossibilidade de cominar crimes ou multas sem prévio amparo legal. O Decreto 46.973/2020, em seu artigo 5º, inciso VI, recomendou, por exemplo, restrições de “frequentar praia, lagoa, rio e piscina pública”, bem como, no inciso V do mesmo artigo, restringiu o “funcionamento de bares, restaurantes, lanchonetes e estabelecimentos congêneres no interior de ‘shopping center’, centro comercial e estabelecimentos congêneres, com redução em 30% (trinta) do horário do funcionamento”.
Mesmo apenas recomendando uma conduta por decreto, a polícia militar fluminense prendeu duas mulheres que passeavam pela praia, apenas por não se retirarem na faixa de areia, o que elas não estavam obrigadas a fazer. A recomendação de um governador de Estado de não frequentar um bem federal, uma praia, resultou na prisão. Nullum crimen, nulla poena sine lege praevia. Era a lição dos romanos sobre a cominação de penas, que foi simplesmente ignorada no Brasil, numa atitude, a meu ver, arbitrária, antijurídica e passível de reparação.
O mesmo decreto fluminense proibiu (e não apenas recomendou) a realização de eventos e atividades com a presença de público, ainda que previamente autorizadas, que envolvem aglomeração de pessoas, tais como: evento desportivo, show, salão de festa, casa de festa, feira, evento científico, comício, passeata e afins, que envolvem o direito fundamental de reunião (artigo 5º, XVI, da CF) e o direito social ao lazer (artigo 6º da CF), dentre outros. Evitar aglomerações é recomendado pela OMS como prevenção ao contágio do coronavírus, mas a via adequada para restringir, de forma excepcionalíssima, os direitos fundamentais é a lei.
Em Pernambuco[4], foram proibidas reuniões com mais de 10 pessoas. No Estado de São Paulo[5], o governo fechou acordo com as operadoras de celular para monitorar o cumprimento do isolamento, que, segundo a lei, permite apenas “separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus”. Na prefeitura do Rio de Janeiro, as autoridades municipais estudam pedir judicialmente a “hospedagem compulsória” de idosos residentes em Copacabana e em comunidades[6].
O Estado avança sobre a liberdade e intimidade do cidadão, ao ponto de saber onde circula, como no admirável mundo novo de 1984, de Adolf Huxley, na formação de guethos para a terceira idade e na criação de barreiras entre Estados e Municípios, o que é expressamente vedado pelo artigo 150, V, da CF.
Na experiência internacional, a pretexto do combate à pandemia, na União Europeia, Hungria e Eslovênia cerceiam a liberdade de imprensa[7]. Os Estados Unidos[8], negando o direito internacional, simplesmente deixando de processar os pedidos de asilo dos centro-americanos que batem à porta de seus territórios.
Assim como no 11 de setembro, viu-se o discurso pela segurança assediando as liberdades, durante a pandemia do coronavírus, vê-se que, a pretexto do combate à pandemia, direitos fundamentais são sacrificados em todo mundo. Não se trata, pois, de um fenômeno exclusivamente brasileiro, embora nossa crise tenha feições particulares.
Voltando ao conflito federativo, o presidente da República ficou impedido, pela decisão liminar do STF na ADPF 627/DF, de suspender os decretos estaduais, por um decreto federal, o que seria, na verdade, uma inconstitucionalidade dando lugar a outra, num verdadeiro estado inconstitucional de coisas difícil de se prever em tempo mais serenos.
O Supremo, porém, não se esqueceu da lei. A decisão do ministro Alexandre de Moraes já mostrou que essa balbúrdia jurídica pode ser consertada, diante da competência geral da União para estabelecer medidas restritivas em todo o território nacional, caso entenda necessário e sem prejuízo da análise desses decretos, nos conflitos que surgirem de sua aplicação. A jurisprudência do STF já se posicionou nesse mesmo sentido outras vezes, como no julgamento da ADI 1.278 e na ADI 2.024 e ADI 3.645.
Nesta última, que julgou lei paranaense sobre o plantio de organismos geneticamente modificado, firmou que é vedado à lei estadual a substituição de lei federal, mas apenas sua suplementação. Já no julgamento do Recurso Extraordinário 596.489, entendeu-se que “é inconstitucional lei municipal que, na competência legislativa concorrente, utilize-se do argumento do interesse local para restringir ou ampliar as determinações contidas em texto normativo de âmbito nacional”.
Está aí, aparentemente, a causa do problema da inflação legislativa: não há, a respeito da quarentena, Lei 13.979/2020, nem amparo constitucional para limitar, ainda que transitoriamente, direitos fundamentais que não seja o estado de defesa e o estado de sítio.
Apesar dos pesares, isso vai passar. É o bordão repetido. Mas, as medidas da pandemia terão um custo jurídico, especialmente na responsabilidade civil, que se explica, segundo Alexandre Aragão Santos, “pela circunstância de que a responsabilidade civil da Administração Pública é sustentada pelos cidadãos — através do sistema fiscal —, que arcam com o ônus. Desta forma, a questão de fundo que habitualmente envolve a responsabilidade civil (quando individuar se deve atribuir os custos de uma ação a quem provocou o dano, e não a quem o sofreu) tem o risco de na nossa seara possuir conotação de todo diversa: trata-se, com efeito, de estabelecer até quando o sacrifício sofrido por um sujeito em virtude da atuação da Administração Pública deve permanecer consigo mesmo, e, quando, ao revés, gravar a Administração e, assim, em última análise, a coletividade como um todo”.[9]
As diversas crises pelas quais passou nosso país já trouxeram precedentes judiciais sobre a responsabilização do Estado por ato lícito, a exemplo do julgamento do Recurso Extraordinário 422.941/DF, relatado pelo Min, Carlos Veloso, quando o STF decidiu que a intervenção estatal na economia somente se faz com respeito aos princípios e fundamentos da Ordem Econômica, concedendo indenização a empresa do setor sucroalcooleiro em razão da fixação, pelo governo, de preços abaixo da realidade
Ao mesmo tempo que não podem ser menosprezadas as recomendações da Organização Mundial da Saúde, nem as necessidades administrativas decorrentes da emergência da nova doença, que vem exigindo das autoridades todo o mundo a adoção de medidas urgentes e eficazes, fundamentadas em evidências científicas e protocolos aprovados por autoridades sanitárias. Mas, a segurança jurídica e a pacificação social devem ter amparo na Constituição e não na “curva da doença”. A curva precisa ser achatada. O Estado Democrático de Direito, não.
As medidas de isolamento social se mostraram as mais recomendadas pelas regras de experiência até aqui para evitar o alastramento da pandemia e os riscos à vida humana e à saúde pública. Resta à lei consagrar os critérios técnicos bem sucedidos como direitos e obrigações. Por enquanto, no vácuo legal, desejos e iniciativas isoladas, algumas arbitrárias e outras acertadas. Mas, entre direitos, obrigações e desejos, os primeiros prevalecerão.
Os Poderes da União têm, em suas mãos, a iniciativa de lei, o poder de suprir a omissão reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, que representam o único caminho de reorganizar a Federação, dentro dos moldes do Estado Democrático de Direito fundado na Constituição Federal de 1988, que, agora, é ameaçada por um inimigo invisível, que desarruma das finanças às liberdades públicas e ameaça a vida das pessoas.
[1] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/para-76-as-pessoas-devem-ficar-em-casa-diz-datafolha.shtml
[2] Comentários feitos no canal 540, às 20h, em 10/04/2020.
[3] RAMOS, André Carvalho. Curso de direitos humanos.
[4] https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/03/23/pernambuco-proibe-reunioes-com-mais-de-dez-pessoas-e-transporte-de-mototaxi-para-conter-avanco-do-novo-coronavirus.ghtml
[5] https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2020/04/epoca-negocios-sp-fechou-acordo-com-operadoras-de-celular-para-monitorar-isolamento-diz-doria.html
[6] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/crivella-estuda-hospedagem-compulsoria-contra-coronavirus-para-idosos-de-favela-e-copacabana.shtml
[7] https://noticias.r7.com/internacional/eslovenia-segue-hungria-e-ameaca-liberdades-em-meio-a-pandemia-31032020
[8] https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2020/03/18/coronavirus-trump-diz-que-convocara-a-lei-de-producao-de-defesa
[9] SANTOS, Alexandre Aragão. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 5556
Ricardo Marques de Almeida é procurador federal.
Revista Consultor Jurídico