Notas sobre o carnaval financeiro que assola o país e o auxílio emergencial
CONTAS À VISTA
Esta coluna tem duas inspirações: Alfredo Augusto Becker, que escreveu o livro "Carnaval Tributário" dando conta das muitas maluquices fiscais que ocorriam, e as colunas de Stanislaw Ponte Preta, intituladas "Febeapá — O Festival de Besteira que Assola o País", transformadas em livros, nas quais descrevia as bobagens do quotidiano da política brasileira nos anos 60 e 70 do século passado. Pena que ambos já faleceram, senão se divertiriam bastante escrevendo sobre os dias atuais. Sem a mesma qualidade, os tenho por inspiração neste texto, que circula em uma terça-feira de um Carnaval que não ocorrerá, em face da pandemia.
Centremos nossa atenção na renovação do auxílio emergencial, pauta do dia após a eleição dos presidentes do Senado e da Câmara.
Diversos grupos sociais vêm sendo objeto de preocupação governamental em razão de sua vulnerabilidade econômica. Há o sistema do Bolsa Família, criado pelo presidente Lula, que reuniu e ampliou diversos programas antes existentes no governo FHC. Em razão da pandemia, o atual presidente da República, ao invés de ampliar o valor do Bolsa Família e recalibrá-lo, preferiu propor algo novo, um auxílio emergencial no valor de R$ 200, baseado em outros critérios. No Congresso, esse valor foi aumentado para três parcelas de R$ 600 com, pelo menos, dois escopos: ampliar a rede de proteção social e se transformar em uma espécie de pauta-bomba, tão usual no período em que o notório Eduardo Cunha esteve à frente da Câmara dos Deputados. A Lei 13.982/20 foi sancionada em abril e, para usar uma metáfora bélica, tão em voga nos dias atuais, o tiro saiu pela culatra, pois o que seria uma pauta-bomba aumentou o prestígio presidencial.
De olho na reeleição, o presidente adotou uma manobra legislativa para manter esse auxílio emergencial editando a Medida Provisória 1.000, em setembro, para pagamento de um adendo por mais três meses, no valor de R$ 300 cada parcela. Qual a peculiaridade financeira desse procedimento? O presidente não compartilhou com o Congresso os louros desse novo pagamento e nem permitiu que o Legislativo aumentasse o valor proposto, pois a medida provisória caducaria antes que fosse votada, o que efetivamente ocorreu.
Chegamos ao início de 2021 sem o auxílio e a economia dá sinais de enfraquecimento. Novas ideias para seu pagamento surgem no horizonte, mas tirar dinheiro de onde? Além disso, e mais importante, existe o teto de gastos, que o mercado quer ver preservado a qualquer custo.
Propostas não faltam. Marcos Mendes sugere oito fontes para custear essa nova etapa de pagamento do auxílio, todas preservando o teto de gastos, mas com muitas dificuldades políticas. São listadas: 1) dirigir o dinheiro das emendas parlamentares para esse gasto; porém, o caro leitor acredita que a turma do Centrão vai topar deixar de usar esse dinheiro carimbado em seus redutos eleitorais?; 2) economia de recursos no poder público, proposta que me parece adequada, mas insuficiente, pois, aparentemente, seus gastos já estão no osso; 3) participação de Estados e municípios no pagamento do auxílio; o que me parece ter pouca chance de êxito, pois cada qual quererá capitalizar individualmente essa benesse política, não a compartilhando com a União; 4) prorrogação do congelamento de salários do funcionalismo público para 2022, o que é bastante possível, mas dependerá do apoio político do Centrão, pouco afeito a esse tipo de enfrentamento; 5) revogação das deduções do Imposto de Renda das Pessoas Físicas; ocorre que isso afetará fortemente a classe média, contribuinte desse imposto, e também dependerá do apoio político do Centrão, que tem nesse segmento sua base. Além disso, esses efeitos só poderão valer para o próximo ano, em face do princípio da anterioridade; 6) revogação da prorrogação da desoneração da folha de pagamentos; essa proposta atingirá em cheio o nível de desemprego, já bastante alto em nosso país; 7) revogação de benefícios fiscais a setores específicos, o que, além de só poder valer para o próximo ano, em face da anterioridade, minará a base de sustentação do governo em algumas áreas — vide o que vem acontecendo com o governo Dória em São Paulo; e 8) extinção e privatização de estatais menos relevantes, o que demandará tempo para ser concretizado. Em suma, as oito propostas apresentadas são interessantes para análise acadêmica, mas não servem para a efetividade pretendida, pois a ideia é que tais recursos sejam pagos imediatamente a quem deles precisa.
Outra proposta que está sendo discutida é usar o artigo 107, §6º, II, ADCT, que afasta os créditos extraordinários do teto de gastos. Ocorre que o artigo 167, §3º, CF, determina que a abertura de crédito extraordinário "somente será admitida para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, observado o disposto no artigo 62". Eis o ponto: será que se pode dizer que se trata de uma despesa imprevisível após um ano de pandemia, dez meses depois do auxílio emergencial (Lei 13.982, de 2/4/20), seis meses após o adendo ao auxílio emergencial (MP 1.000, de 2/9/20), e tendo sido votada a LDO (Lei 14.116, de 31/12/20) sem a previsão de fonte para seu pagamento em 2021? Que raios de imprevisibilidade é essa? Parece falta de planejamento, tal como vem ocorrendo com a guerra das vacinas que presenciamos.
Outra ideia é a de aumentar a carga tributária, já rechaçada — pelo menos até o momento em que estas linhas estão sendo escritas.
A mais recente proposta que surge diz respeito à prorrogação do estado de calamidade pública, tendo por corolário a prorrogação do "orçamento de guerra" (EC 106). Para tanto, bastaria alterar o texto do Decreto Legislativo 6 para colocar outra data, o que já está em gestação, transferindo-o para 30/6/21. Nesse caso, todos os limites e controles orçamentários ficam suspensos, inclusive as regras do teto de gastos, vinculadas aos gastos para o combate ao coronavírus. Mas como o mercado receberá mais esta postergação?
De forma coerente, Élida Graziane Pinto, colega neste espaço, aponta para a necessidade de simplesmente extinguir o teto de gastos, ao invés de driblá-lo, quando afirma: "A insana interdição do debate sobre a necessidade de alterar o teto dado pela Emenda 95/2016 não pode dar causa a uma acomodação tão evidentemente fraudulenta e inconstitucional como essa". Porém, como o mercado receberá essa revogação do teto de gastos? Nosso ministro da Economia sustentará as pressões?
De fato, parece-me inconstitucional o artigo 110, ADCT, mas o conjunto do teto de gastos só se sustentaria se tivessem sido implementadas as reformas constitucionais pretendidas pelo ministro Paulo Guedes, sejam as financeiras/orçamentárias, seja a tributária, que comento em uma coletânea lançada pela Editora ConJur. Essas reformas ainda tramitam pelo Congresso, com baixas chances de serem aprovadas ainda neste ano.
Enfim, como ficará a prorrogação do auxílio emergencial?
Uma fórmula menos bombástica será seguir a mesma toada da MP 1.000, que foi utilizada para pagar o adendo de três parcelas de R$ 300 a partir de setembro/20, isto é, poderá ser usada uma medida provisória, com efeitos imediatos, e o Congresso não a apreciará a tempo, convalidando assim os pagamentos realizados. Ficarão todos contentes: o mercado, pois, de certa forma, preserva o ícone do teto de gastos; as pessoas vulneráveis, que receberão os valores; o Congresso, pois não precisará se debruçar sobre temas como esse, nevrálgico e urgente; e o presidente, que verá sua popularidade subir de novo — e formalmente tudo se acomodará. O Direito Financeiro continuará convivendo com o "Febeapá" do Stanislaw, agora rebatizado de "Febefapá — Festival de Besteira Financeira que Assola o País", mas quem se importa? E lá nave va, como no belo filme de Federico Fellini, de 1983.
De minha parte, nesta terça-feira gorda de Carnaval, sem Carnaval, sigo com Chico Buarque: "Estou me guardando pra quando o Butantan chegar…".
Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e atualmente no exercício da presidência da Comissão de pós-graduação da faculdade.
Revista Consultor Jurídico
Fonte:sintracimento.org.br