Filiado à:

Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Ladrilhos Hidráulicos, Produtos de Cimento, Fibrocimento e Artefatos de Cimento Armado de Curitiba e Região

Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Ladrilhos Hidráulicos, Produtos de Cimento, Fibrocimento e Artefatos de Cimento Armado de Curitiba e Região

Para quem serve a Justiça no Brasil?

Podemos debater seriamente a Justiça no Brasil ou optar por um modelo de Poder Judiciário servil ao capital financeiro e corporativo e hostil à população.

Marcelo José Ferlin D’Ambroso

Recente publicação do Conselho Nacional de Justiça, o relatório anual “Justiça em Números”, na versão 2022, contempla um número de 77,3 milhões de ações em trâmite no país. Outra matéria, que pode ser encontrada aqui, intitulada “Judiciário custou R$ 103,9 bilhões aos cofres públicos em 2021, aponta CNJ – do jornal O Estadão, de 02.09.2022”, não ataca explicitamente o orçamento do Poder Judiciário, inobstante desde a chamada contenha uma crítica implícita.

Por aqui começamos: parece que ao grande capital não basta tomar conta da Justiça, é necessário que ela custe ainda menos para que sobrem mais recursos do Estado para as políticas econômicas pró-capital.

Em 2017, um severo ataque midiático à Justiça do Trabalho e ao Direito do Trabalho redundou senão na mais célere, em uma das mais apressadas reformas da legislação que já se viu no país: em curtos sete meses, 104 artigos da CLT foram reformados (ou melhor, “deformados”), em razão de duas grandes e convenientes fake news: que “o Brasil é o país com o maior número de ações trabalhistas no mundo” (sobre o tema, recomendo o artigo do Prof. Cássio Casagrande, neste enlace e relacionado ao final), e que “o país tem muitas ações trabalhistas”. Podem parecer a mesma coisa, mas as duas fake news têm significados diferentes que se reforçam mutuamente: a primeira para justificar que algo tinha de ser feito com urgência para mudar o “alarmante quadro” anunciado, e a segunda para justificar a instituição de limitações de acesso à Justiça do Trabalho. De fato, as duas coisas foram feitas: a lei 13467/17, conhecida como “reforma trabalhista”, foi aprovada sem discussões com a comunidade jurídica e o povo, e os obstáculos de acesso à justiça nela contidos à classe trabalhadora até hoje repercutem severamente no judiciário trabalhista (vide ADI 5766 no STF).

De fato, de um número aproximado de 4.000.000 de ações trabalhistas em andamento antes da deforma trabalhista, houve significativo decréscimo para o número atual que gira em torno de 2.600.000 de processos (algo como 35% menos). Obviamente, não porque o número de violações de direitos sociais tenha diminuído, mas sim porque a imposição de inúmeras condenações de trabalhadoras, trabalhadores e sindicatos em custas e honorários advocatícios e periciais – inclusive com execuções e bloqueios de contas -, além da absurda exigência de “liquidação de pedidos” (obrigando a advocacia da classe trabalhadora a contratar serviços contábeis para ajuizar uma demanda) atendeu plenamente ao desejo externado nas fake news citadas. A “moralização” da Justiça do Trabalho para que a classe trabalhadora fizesse uso comedido do aparato judiciário, para coibir “abusos”, parece que deu certo. Afinal, a disciplina e a obediência imposta às pessoas despossuídas deveria chegar também em quem patrocina seus interesses perante o capital, domesticando a advocacia trabalhista para a nova “moral judiciária”. Tudo justificado e estabilizado segundo essas fake news que ganharam contorno de pós verdade (mentiras emotivas ditas ao povo e que não admitem contestação, embora se saiba que seu conteúdo é inverídico).

Paralelamente, é importante comparar esses números no sentido que realmente importa: em 2014, o relatório “Justiça em Números” apontava a existência de 100.000.000 de processos no país. Aparentemente, de 2014 para 2022 o Judiciário “cumpriu” seu papel, aumentando a produtividade da Magistratura e coibindo o acesso à justiça ao povo (no que me refiro não só aos embaraços de acesso à Justiça do Trabalho, como também ao aumento das taxas judiciárias na Justiça Comum, desestimulando a população a demandar em juízo).

Pior, o país passou ao largo de debater uma importante constatação feita pelos juízes André Augusto Salvador Bezerra (TJSP) e Antônio Silveira Neto (TJPB) – constante da apostila III do curso da ENFAM intitulado “Grandes litigantes e demandas repetitivas”): do universo de 50.000.000 de lides de direito privado existentes naquele ano de 2014, havia duas categorias de grandes litigantes consumindo os recursos do Poder Judiciário. Bancos contavam com um acervo de 38.000.000 de ações (76%) e empresas de telefonia privada com mais 6.000.000 de ações (12%), sobrando para todo o restante da população apenas 12% de demandas. Por outras palavras, bancos consumiam, em 2014, 38% do orçamento do Poder Judiciário, e empresas de telefonia privada outros 6%. Juntas, estas duas categorias de grandes litigantes abarcavam 44% da utilização da Justiça!

Estranhamente, não houve nenhuma fake news nem muito menos fair news (a notícia verídica) sobre o tema. Jamais foi debatido! Comentava-se a existência de “muita ação trabalhista” mas nada se dizia nem se diz sobre muitas ações de bancos. Se 4.000.000 de demandas laborais eram muito, por quê razão 38.000.000 de ações bancárias nunca foram objeto de preocupação no Brasil? Mesmo as ações das empresas de telefonia privada, correspondentes a 6.000.000 de demandas superavam o número de demandas trabalhistas em 30% e também nunca foram questionadas. É mais: não consta nem mesmo que exista alguma operadora brasileira dentre estas empresas de telefonia.

As possíveis respostas a essa indagação me fazem lembrar de um importante livro de reflexão crítica ainda hoje atual, publicado em 1962, com o título “Quem faz as leis no Brasil?”, de autoria de Osny Duarte Pereira, denunciando as práticas imperiais no Brasil e na América Latina, de quem se inspira este texto e sua chamada “Para quem serve a justiça no Brasil?”.

Parece que o país caminha no sentido de que “litigar é possível” – mas só para quem tem capital e poder econômico. O povo tem de pagar custas altíssimas, fazer uso comedido do Poder Judiciário, e a advocacia, quando patrocina interesses de pessoas comuns, tem de estar muito atenta para essa nova “moral judiciária”, que tende a ver na população a responsabilidade exclusiva pelo “elevado” número de ações no país (algo como 12% do total).

Não quero aprofundar, na brevidade deste texto, nos números e porcentagens – até porque me reporto a números de 2014 em breve comparação a 2022. Pretendo apenas chamar a atenção para a necessidade do debate efetivo sobre grandes litigantes e políticas judiciárias que terminem com o mau uso da justiça pelo grande capital. Os números de 2022 revelam decréscimo de litigiosidade, mas não de grandes litigantes, como se pode ver aqui (pois “…órgãos públicos, bancos públicos e privados têm o maior número de ações em andamento” – notícia da Agência Brasil intitulada “CNJ divulga lista com os maiores litigantes da Justiça”). E nem era de se esperar o contrário, ante a absoluta inexistência de políticas públicas contra essa nefasta e predatória litigiosidade do capital financeiro e corporativo.

Esta discussão – que urge ser feita -, passa pelo papel do Estado e do Poder Judiciário enquanto garante de Direitos Humanos (e não de direitos do capital), lembrando as palavras de Katharina Pistor (The code of capital – how the law creates wealth and inequality, 2019), que adverte que o imperialismo tem seus instrumentos jurídicos de operação, basicamente, o direito contratual, direitos de propriedade (inclusive intelectual), direito de garantias, fiduciário, corporativo e de falências, cabendo exportá-los às neocolônias, para total segurança jurídica do capital imperial na etapa corporativo-financeira. É corolário lógico que o direito imperial atrai a justiça imperial que, vertida em números, mostra que apenas 12% do orçamento do Poder Judiciário serve para os interesses do povo.

Num país que voltou a figurar no mapa da fome e em que 80% das famílias estão endividadas, muitas pela necessidade de comer, é extremamente preocupante que a Justiça sirva para sacramentar políticas econômicas favoráveis a bancos, de prática de juros exorbitantes que espoliam a nação.

Concluindo, podemos debater seriamente a Justiça no Brasil, ou a neocolônia brasileira pode optar por um modelo de Poder Judiciário servil ao capital financeiro e corporativo e hostil à população.

Referências

CASAGRANDE, Cássio. (2017). Brasil, “campeão de ações trabalhistas”. Como se constrói uma falácia. Em jornal JOTA, 25 de jun. 2017. São Paulo.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. (2022). Relatório Justiça em Números. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/09/justica-em-numeros-2022.pdf. Acesso em set. 2022.

PEREIRA, Osny Duarte. (1962). Quem faz as leis no Brasil? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

PISTOR, Katharina. (2019). The code of capital. How the law creates wealth and inequality. Princeton: Princeton University Press.

Marcelo José Ferlin D’Ambroso é Desembargador do Trabalho (TRT da 4ª Região – RS/Brasil), Fundador e Presidente do IPEATRA, Membro da AJD – Associação Juízes para a Democracia, Membro da AAJ – Associação Americana de Juristas Rama Brasil, Doutor em Ciências Jurídicas.

Fonte: Direito do Trabalho Crítico

DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/para-quem-serve-a-justica-no-brasil/

 

Fonte:sintracimento.org.br

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

um × 3 =