Como os preços dos alimentos afetaram o salário mínimo no Brasil (2023-2024)
A solução para a questão alimentar no Brasil requer uma abordagem que integre políticas de desenvolvimento rural e urbano.
Erik Chiconelli Gomes
Arelação entre inflação dos alimentos e salário mínimo real no Brasil durante 2023-2024 revela um complexo entrelaçamento de questões estruturais que afetam tanto o espaço urbano quanto o rural. Esta dinâmica transcende a simples análise econômica, manifestando-se nas relações sociais, na organização do território e nas condições materiais de vida da população trabalhadora.
A estrutura fundiária brasileira, historicamente marcada por uma profunda concentração de terras, representa um dos principais obstáculos à democratização do acesso aos alimentos. O modelo de desenvolvimento agrário adotado no país privilegiou a formação de grandes propriedades voltadas à exportação, em detrimento de uma estrutura produtiva diversificada e orientada para o mercado interno.
A volatilidade dos preços dos alimentos durante o período analisado reflete as contradições de um sistema produtivo que prioriza as commodities agrícolas em detrimento da segurança alimentar. Esse modelo não apenas encarece os alimentos nas áreas urbanas, mas também compromete a reprodução social dos pequenos agricultores, criando um ciclo vicioso de empobrecimento e êxodo rural.
A geografia da produção alimentar no Brasil revela padrões de desigualdade territorial que se manifestam tanto na distribuição das terras quanto no acesso aos mercados. A concentração da produção em determinadas regiões, combinada com a precariedade da infraestrutura logística, resulta em elevados custos de transporte que são repassados aos consumidores finais.
Nas áreas metropolitanas, a combinação entre baixos salários e altos preços dos alimentos tem criado verdadeiros desertos alimentares, onde o acesso a produtos frescos e nutritivos é severamente limitado. Essa situação é particularmente grave nas periferias urbanas, onde a população trabalhadora enfrenta longos deslocamentos e dispõe de poucas opções de abastecimento.
A reforma agrária emerge como uma possível solução estrutural para o controle dos preços dos alimentos, especialmente através da criação de cinturões verdes ao redor das grandes cidades. A proximidade entre produção e consumo não apenas reduziria os custos logísticos, mas também fortaleceria os circuitos curtos de comercialização.
Os assentamentos rurais existentes demonstram que, quando bem estruturados, podem contribuir significativamente para o abastecimento alimentar local. A produção diversificada, característica da agricultura familiar, tem potencial para estabilizar os preços e garantir maior segurança alimentar tanto para as famílias produtoras quanto para os consumidores urbanos.
A precarização das relações de trabalho nas cidades tem agravado o impacto da inflação alimentar sobre o orçamento familiar. O crescimento da informalidade e da terceirização criou uma massa de trabalhadores com rendimentos instáveis e dificuldades crescentes para garantir sua alimentação básica.
A especulação imobiliária nas áreas periurbanas tem pressionado espaços tradicionalmente dedicados à produção de hortaliças e legumes, aumentando a distância entre produção e consumo. Este processo não apenas encarece os alimentos, mas também compromete a viabilidade da agricultura familiar próxima aos centros urbanos.
A desarticulação dos circuitos locais de produção e comercialização de alimentos tem aumentado a dependência de grandes redes varejistas, especialmente nas cidades médias e pequenas. Esse processo concentra o poder de mercado, reduz a autonomia dos produtores e eleva os preços para os consumidores.
A análise das variações do salário mínimo real precisa considerar as diferentes realidades territoriais do país. Como observa Milton Santos em A Natureza do Espaço (1996), o território brasileiro é marcado por uma modernização incompleta e desigual, que se reflete diretamente no acesso diferenciado aos alimentos em diferentes regiões.
A questão alimentar nas regiões metropolitanas apresenta características específicas, onde a distância entre produção e consumo é agravada pela especulação imobiliária e pela precariedade dos sistemas de transporte. De acordo com José Graziano da Silva em A Nova Dinâmica da Agricultura Brasileira (1996), essa configuração espacial contribui significativamente para a elevação dos preços dos alimentos.
O processo de financeirização da agricultura tem transformado alimentos em ativos financeiros, sujeitando seus preços a flutuações que extrapolam a lógica da oferta e demanda. Bernardo Mançano Fernandes destaca em “Construindo um Estilo de Pensamento na Questão Agrária” (2013) que esse fenômeno afeta especialmente as populações urbanas mais vulneráveis.
A experiência dos assentamentos rurais próximos às grandes cidades demonstra o potencial da agricultura familiar para o abastecimento alimentar urbano. A proximidade geográfica permite a redução dos custos de transporte e a criação de relações diretas entre produtores e consumidores, facilitando o acesso a alimentos frescos e nutritivos.
Os programas de compras institucionais de alimentos da agricultura familiar têm demonstrado que é possível estabelecer circuitos curtos de comercialização benéficos tanto para produtores quanto para consumidores. Esta política, quando articulada com a reforma agrária, pode contribuir significativamente para a estabilização dos preços.
Na perspectiva do trabalho urbano, a inflação dos alimentos tem um impacto particularmente severo sobre os trabalhadores informais e precarizados. Ricardo Antunes argumenta em O Privilégio da Servidão (2018) que a uberização das relações de trabalho amplia a vulnerabilidade alimentar nas cidades.
A organização espacial da produção e distribuição de alimentos reflete e reproduz as desigualdades sociais existentes. Nas periferias urbanas, a escassez de equipamentos públicos de abastecimento e a dependência de intermediários elevam ainda mais os preços dos alimentos para as populações mais vulneráveis.
A reforma agrária, quando pensada em sua dimensão territorial, pode contribuir para a reorganização dos sistemas alimentares locais e regionais. A criação de assentamentos estrategicamente localizados permitiria reduzir as distâncias entre produção e consumo, beneficiando tanto produtores quanto consumidores.
O fortalecimento das redes alternativas de comercialização, como feiras livres, mercados populares e grupos de consumo, representa uma estratégia importante para a democratização do acesso aos alimentos. Essas iniciativas criam espaços de comercialização mais justos e acessíveis.
A questão do abastecimento alimentar nas grandes cidades não pode ser dissociada da necessidade de uma política territorial que preserve e fortaleça os espaços de produção agrícola próximos aos centros urbanos. A expansão urbana desordenada tem comprometido áreas tradicionalmente dedicadas à produção de alimentos.
O período analisado evidencia que a solução para a questão alimentar no Brasil requer uma abordagem que integre políticas de desenvolvimento rural e urbano, considerando as especificidades territoriais e as necessidades das diferentes populações envolvidas.
Referências
Antunes, Ricardo. O Privilégio da Servidão: O Novo Proletariado de Serviços na Era Digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
Fernandes, Bernardo Mançano. Construindo um Estilo de Pensamento na Questão Agrária. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
Graziano da Silva, José. A Nova Dinâmica da Agricultura Brasileira. Campinas: UNICAMP/IE, 1996.
Santos, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.
Erik Chiconelli Gomes é pós-Doutor – FDUSP. Doutor e Mestre em História Econômica na Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Economia do Trabalho (Unicamp) e Direito do Trabalho (USP). Bacharel em Ciências Sociais (USP), Direito (USP) e História (USP). Coordenador Acadêmico e do Centro de Pesquisa e Estudos na Escola Superior de Advocacia (ESA/OABSP).
DM TEM DEBATE
https://www.dmtemdebate.com.br/como-precos-alimentos-afetaram-salario-minimo/
Fonte:sintracimento.org.br