A morte do jovem negro no Extra e o risco de um País moro-bolsonarista
É provável que, se o pacote anticrime do ministro Sergio Moro já vigorasse no País, o assassinato de Pedro Henrique Gonzaga ficaria impune. Ao ser imobilizado e morto por estrangulamento, na última quinta-feira (14), por um vigilante do supermercado Extra da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, o jovem negro, de apenas 19 anos, estava desarmado e não oferecia perigo algum. Nada disso importaria caso o Judiciário brasileiro estivesse tomado pelo ideário moro-bolsonarista.
Por André Cintra
O vigilante Davi Ricardo Moreira Amâncio estrangula e mata o jovem Pedro Gonzaga: intolerância e brutalidade
Neste hipotético e despótico Brasil, Davi Ricardo Moreira Amâncio – o funcionário terceirizado que ceifou covardemente a vida de Pedro – não teria o que temer. Para ser inocentado e se livrar de qualquer punição, bastaria a Davi alegar que, como segurança, agiu sob “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Nada mais. Com essas poucas palavrinhas, ele evocaria o princípio do “excludente de ilicitude” e seguiria a vida em paz. Como Pedro – que era dependente químico – estava tendo um surto psicótico, a justificativa viria a calhar.
É verdade que o primeiro esboço do pacote anticrime reserva a “licença para matar” a agentes públicos de segurança – os policiais em geral. Mas, no Brasil em que as ideias de Moro e Bolsonaro forem dominantes, a distinção entre público e privado ficará cada vez mais tênue e efêmera, como a escrita que a esquadrilha da fumaça deixa no céu.
No paraíso moro-bolsonarista, o monopólio da violência – do uso legítimo da força física – já não será exclusivo do Estado. Além de pregar o armamento da sociedade e falar, por exemplo, em “fuzilar a petralhada”, Bolsonaro advoga a descriminalização da matança. “Enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo”, declarou ele, ainda como deputado federal, em 2003.
Suas manifestações sobre as milícias foram invariavelmente condescendentes. “Querem atacar o miliciano, que passou a ser o símbolo da maldade e pior que os traficantes. Como ele ganha R$ 850 por mês – que é quanto ganha um soldado da PM ou do bombeiro – e tem a própria arma, ele organiza a segurança na sua comunidade”, saudou Bolsonaro, na tribuna da Câmara, em 2014. “Tem gente que é favorável à milícia, que é a maneira que eles têm de se ver livres da violência. Naquela região onde a milícia é paga, não tem violência”, reforçou, no ano passado, em entrevista à rádio Jovem Pan.
Não se pode dizer que Sergio Moro tem o hábito de romancear os milicianos – a primeira versão de seu pacote anticrime vai, reconheça-se, em direção contrária. Mas, quando aceitou largar a magistratura para assumir o Ministério da Justiça e da Segurança Pública, o ex-juiz da Lava Jato renunciou a certas opiniões arraigadas, como sua oposição ao excludente de ilicitude. Hoje, pasmem: é Moro – e não mais o clã Bolsonaro – quem defende a “licença para matar” de modo mais hábil e ilustrado.
Posse e porte de armas
Davi, o homem que matou Pedro Gonzaga, não é miliciano, nem integra qualquer grupo de extermínio. Foi, sim, condenado pela lesão corporal de uma ex-companheira. A legislação de um utópico mundo moro-bolsonarista talvez o isentasse de responsabilidade – mas a lei brasileira atual proíbe que qualquer pessoa com antecedentes criminais exerça a função de agente privado de segurança.
Da agressão a uma ex-namorada ao assassinato de um negro, Davi incorreu em dois tipos frequentes (e criminosos!) de intolerância – o machismo e o racismo. Seu exemplo nos leva a pensar se realmente faz sentido que o homem comum tenha cada vez menos empecilhos para se armar e se “defender” por conta própria.
A ladainha de que não é tão prático assim comprar uma arma carece de mais fundamento. O valor médio de uma pistola a ser adquirida nos marcos da lei (por volta de R$ 7 mil) pode parecer proibitivo para a imensa maioria da população brasileira. Não para o vigilante Davi, que pagou fiança de R$ 10 mil para sair da cadeia. Além do mais, o assassino de Pedro Gonzaga conseguiu esconder de uma empresa seus antecedentes criminais. Será de fato impossível acobertar isso de uma revendedora de armas?
O discurso oficial não é digno de crédito. Em janeiro, Bolsonaro assinou o decreto que facilita a posse de armas de fogo. Além de agentes públicos de segurança e colecionadores, as novas regras beneficiam donos de estabelecimentos comerciais, habitantes de áreas rurais e residentes em áreas urbanas com mais de dez homicídios por 100 mil habitantes. Neste último segmento, está inclusa a população de todas as 27 unidades federativas do Brasil. Em outras palavras, o País inteiro.
Na cerimônia em que anunciou a desburocratização da posse de armas, Bolsonaro tratou a “bancada da bala” pelo eufemismo “bancada da legítima defesa”. Com o objetivo de sancionar uma medida menos severa, afirmou que “o grande problema que tínhamos na lei é comprovação da efetiva necessidade. Isso beirava a subjetividade”. Deu a entender que, até o fim de seu governo, vai flexibilizar também o porte.
É grande o lobby para que o presidente dê esse passo e descomplique o direito de andar armado. Se o uso de armas for ainda mais estimulado, o governo tentará, indubitavelmente, esgarçar o conceito de “legítima defesa”. As autodeclarações de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção” vão abundar como cogumelos depois de uma chuva de verão.
As empresas
De todo modo, antes que caia a chuva – e antes que o moro-bolsonarismo vingue –, é preciso reparar a morte de Pedro Gonzaga e fazer justiça. Na Bíblia, para virar herói, Davi teve de matar o gigante filisteu Golias e, assim, salvar o povo de Israel. No Brasil, mesmo sob o governo Bolsonaro, um Davi que mata Pedro por intolerância e com brutalidade não pode ser heroicizado em hipótese nenhuma.
Por fim, precisamos falar sobre o Extra e sua “colaboradora”, a empresa de segurança Groupe Protection. É possível que, sob uma realidade moro-bolsonarista, uma e outra não sejam responsabilizadas por um crime igual à morte de Pedro Gonzaga. Para Bolsonaro, afinal, o empresário está um degrau acima do “homem comum” – é a personificação do “humano direito”.
Quando diz que “ser patrão no Brasil é um tormento”, o presidente não alude apenas à legislação trabalhista, ao “custo Brasil” e a outras questões do gênero. Abrange também demandas de segurança sob a ótica empresarial. Tanto que o decreto pró-armamento trata com deferência os “titulares ou responsáveis legais de estabelecimentos comerciais ou industriais”.
A prevalecer essa lógica, o próprio Extra não precisaria vir a público para tentar “gerenciar a crise” da morte de mais um jovem negro, nem se preocupar com indecorosas notas à imprensa ou discursos de falsa indignação. Como ainda não estamos nesse Brasil tão sombrio – embora haja trevas –, a reação das empresas é intolerável.
Ao programa Fantástico, por exemplo, a Groupe Protection afirmou não ver problema em ter contratado um vigilante com antecedentes criminais – o que é vedado por lei. Em seu mundo edulcorado, apenas a Polícia Federal é que tem a obrigação de checar a ficha criminal de um vigilante. Nem Pôncio Pilatos teria em mente um golpe de retórica do tipo…
No caso do Extra, a impressão deixada é menos cínica, mas igualmente deplorável. Diante da comoção em torno do assassinato de Pedro Gonzaga, o supermercado emitiu um comunicado para garantir que, dependendo dos resultados das investigações, poderá – quiçá, talvez, vamos ver – romper o contrato com a Groupe Protection.
Para o Extra, é pouco o fato de um segurança dessa empresa ter matado um jovem indefeso no interior de uma de suas lojas – e também é pouco o fato de que outros seguranças presentes à cena do crime não tenham feito absolutamente nada para evitar o pior. Tampouco são suficientes as imagens do circuito interno do estabelecimento, ou as gravações feitas com dispositivos móveis.
Pois o Extra não quer enfrentar desde já o problema. Por mais que evidências e provas sejam fartas, a rede de supermercados prefere vender a versão de que é melhor esperar o final das investigações – em um, dois, dez ou cem anos. Caso precoce e dissimulado de moro-bolsonarismo, o Extra parece já viver num Brasil em que o “escusável medo”, a “surpresa” e a “violenta emoção” justificam ou atenuam o terror.
Torçamos e lutemos para que o pacote de Moro/Bolsonaro seja barrado no Congresso e no Supremo Tribunal Federal, tantas são suas inconstitucionalidades. Mas é forçoso reconhecer que há ambiente para tal retrocesso. No Brasil, como se vê, a cadela do fascismo passou da fase do cio e já começou a se reproduzir. Ao ser minimizada por seus responsáveis diretos e indiretos, a morte cruel e banal de Pedro Gonzaga é a expressão desse fascismo à flor da pele.
É verdade que o primeiro esboço do pacote anticrime reserva a “licença para matar” a agentes públicos de segurança – os policiais em geral. Mas, no Brasil em que as ideias de Moro e Bolsonaro forem dominantes, a distinção entre público e privado ficará cada vez mais tênue e efêmera, como a escrita que a esquadrilha da fumaça deixa no céu.
No paraíso moro-bolsonarista, o monopólio da violência – do uso legítimo da força física – já não será exclusivo do Estado. Além de pregar o armamento da sociedade e falar, por exemplo, em “fuzilar a petralhada”, Bolsonaro advoga a descriminalização da matança. “Enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo”, declarou ele, ainda como deputado federal, em 2003.
Suas manifestações sobre as milícias foram invariavelmente condescendentes. “Querem atacar o miliciano, que passou a ser o símbolo da maldade e pior que os traficantes. Como ele ganha R$ 850 por mês – que é quanto ganha um soldado da PM ou do bombeiro – e tem a própria arma, ele organiza a segurança na sua comunidade”, saudou Bolsonaro, na tribuna da Câmara, em 2014. “Tem gente que é favorável à milícia, que é a maneira que eles têm de se ver livres da violência. Naquela região onde a milícia é paga, não tem violência”, reforçou, no ano passado, em entrevista à rádio Jovem Pan.
Não se pode dizer que Sergio Moro tem o hábito de romancear os milicianos – a primeira versão de seu pacote anticrime vai, reconheça-se, em direção contrária. Mas, quando aceitou largar a magistratura para assumir o Ministério da Justiça e da Segurança Pública, o ex-juiz da Lava Jato renunciou a certas opiniões arraigadas, como sua oposição ao excludente de ilicitude. Hoje, pasmem: é Moro – e não mais o clã Bolsonaro – quem defende a “licença para matar” de modo mais hábil e ilustrado.
Posse e porte de armas
Davi, o homem que matou Pedro Gonzaga, não é miliciano, nem integra qualquer grupo de extermínio. Foi, sim, condenado pela lesão corporal de uma ex-companheira. A legislação de um utópico mundo moro-bolsonarista talvez o isentasse de responsabilidade – mas a lei brasileira atual proíbe que qualquer pessoa com antecedentes criminais exerça a função de agente privado de segurança.
Da agressão a uma ex-namorada ao assassinato de um negro, Davi incorreu em dois tipos frequentes (e criminosos!) de intolerância – o machismo e o racismo. Seu exemplo nos leva a pensar se realmente faz sentido que o homem comum tenha cada vez menos empecilhos para se armar e se “defender” por conta própria.
A ladainha de que não é tão prático assim comprar uma arma carece de mais fundamento. O valor médio de uma pistola a ser adquirida nos marcos da lei (por volta de R$ 7 mil) pode parecer proibitivo para a imensa maioria da população brasileira. Não para o vigilante Davi, que pagou fiança de R$ 10 mil para sair da cadeia. Além do mais, o assassino de Pedro Gonzaga conseguiu esconder de uma empresa seus antecedentes criminais. Será de fato impossível acobertar isso de uma revendedora de armas?
O discurso oficial não é digno de crédito. Em janeiro, Bolsonaro assinou o decreto que facilita a posse de armas de fogo. Além de agentes públicos de segurança e colecionadores, as novas regras beneficiam donos de estabelecimentos comerciais, habitantes de áreas rurais e residentes em áreas urbanas com mais de dez homicídios por 100 mil habitantes. Neste último segmento, está inclusa a população de todas as 27 unidades federativas do Brasil. Em outras palavras, o País inteiro.
Na cerimônia em que anunciou a desburocratização da posse de armas, Bolsonaro tratou a “bancada da bala” pelo eufemismo “bancada da legítima defesa”. Com o objetivo de sancionar uma medida menos severa, afirmou que “o grande problema que tínhamos na lei é comprovação da efetiva necessidade. Isso beirava a subjetividade”. Deu a entender que, até o fim de seu governo, vai flexibilizar também o porte.
É grande o lobby para que o presidente dê esse passo e descomplique o direito de andar armado. Se o uso de armas for ainda mais estimulado, o governo tentará, indubitavelmente, esgarçar o conceito de “legítima defesa”. As autodeclarações de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção” vão abundar como cogumelos depois de uma chuva de verão.
As empresas
De todo modo, antes que caia a chuva – e antes que o moro-bolsonarismo vingue –, é preciso reparar a morte de Pedro Gonzaga e fazer justiça. Na Bíblia, para virar herói, Davi teve de matar o gigante filisteu Golias e, assim, salvar o povo de Israel. No Brasil, mesmo sob o governo Bolsonaro, um Davi que mata Pedro por intolerância e com brutalidade não pode ser heroicizado em hipótese nenhuma.
Por fim, precisamos falar sobre o Extra e sua “colaboradora”, a empresa de segurança Groupe Protection. É possível que, sob uma realidade moro-bolsonarista, uma e outra não sejam responsabilizadas por um crime igual à morte de Pedro Gonzaga. Para Bolsonaro, afinal, o empresário está um degrau acima do “homem comum” – é a personificação do “humano direito”.
Quando diz que “ser patrão no Brasil é um tormento”, o presidente não alude apenas à legislação trabalhista, ao “custo Brasil” e a outras questões do gênero. Abrange também demandas de segurança sob a ótica empresarial. Tanto que o decreto pró-armamento trata com deferência os “titulares ou responsáveis legais de estabelecimentos comerciais ou industriais”.
A prevalecer essa lógica, o próprio Extra não precisaria vir a público para tentar “gerenciar a crise” da morte de mais um jovem negro, nem se preocupar com indecorosas notas à imprensa ou discursos de falsa indignação. Como ainda não estamos nesse Brasil tão sombrio – embora haja trevas –, a reação das empresas é intolerável.
Ao programa Fantástico, por exemplo, a Groupe Protection afirmou não ver problema em ter contratado um vigilante com antecedentes criminais – o que é vedado por lei. Em seu mundo edulcorado, apenas a Polícia Federal é que tem a obrigação de checar a ficha criminal de um vigilante. Nem Pôncio Pilatos teria em mente um golpe de retórica do tipo…
No caso do Extra, a impressão deixada é menos cínica, mas igualmente deplorável. Diante da comoção em torno do assassinato de Pedro Gonzaga, o supermercado emitiu um comunicado para garantir que, dependendo dos resultados das investigações, poderá – quiçá, talvez, vamos ver – romper o contrato com a Groupe Protection.
Para o Extra, é pouco o fato de um segurança dessa empresa ter matado um jovem indefeso no interior de uma de suas lojas – e também é pouco o fato de que outros seguranças presentes à cena do crime não tenham feito absolutamente nada para evitar o pior. Tampouco são suficientes as imagens do circuito interno do estabelecimento, ou as gravações feitas com dispositivos móveis.
Pois o Extra não quer enfrentar desde já o problema. Por mais que evidências e provas sejam fartas, a rede de supermercados prefere vender a versão de que é melhor esperar o final das investigações – em um, dois, dez ou cem anos. Caso precoce e dissimulado de moro-bolsonarismo, o Extra parece já viver num Brasil em que o “escusável medo”, a “surpresa” e a “violenta emoção” justificam ou atenuam o terror.
Torçamos e lutemos para que o pacote de Moro/Bolsonaro seja barrado no Congresso e no Supremo Tribunal Federal, tantas são suas inconstitucionalidades. Mas é forçoso reconhecer que há ambiente para tal retrocesso. No Brasil, como se vê, a cadela do fascismo passou da fase do cio e já começou a se reproduzir. Ao ser minimizada por seus responsáveis diretos e indiretos, a morte cruel e banal de Pedro Gonzaga é a expressão desse fascismo à flor da pele.
Fonte: Vermelho
Fonte: sintracimento.org.br