Minimizar direitos não vai estimular a abertura de mais postos de trabalho
OPINIÃO
O presidente da República tem sustentado em vários momentos e em várias mídias, desde a sua candidatura até os dias atuais, a necessidade de serem minimizados os direitos trabalhistas como forma de estimular a abertura de mais postos de trabalho. Segundo suas próprias palavras, “o trabalhador terá de escolher entre mais direito e menos emprego, ou menos direito e mais emprego”, como se o problema do desemprego no país estivesse diretamente ligado à existência de direitos ou garantias trabalhistas[1].
Trata-se de retórica conhecidíssima, aliás.
Os mesmos argumentos expendidos pelo chefe do Poder Executivo — e com a mesma veemência, diga-se — já foram esgrimidos para justificar a aprovação da Lei 13.467/2017, mais conhecida do grande público como reforma trabalhista. Naquela ocasião, dizia o ministro da Fazenda que mencionada modificação legislativa geraria mais de 6 milhões de empregos formais, especialmente pelo empoderamento de trabalhadores e empregadores para negociarem suas próprias regras trabalhistas, daí a imperiosa necessidade de sua implementação[2].
O tempo passou e nada disso aconteceu.
Os indicadores econômicos atestam que depois de mais de ano de vigência da reforma os índices mensuradores do desemprego continuam praticamente os mesmos ou até um pouco mais elevados, como dá conta noticiário recente[3].
Os jornais também dizem do crescimento da informalidade e do “trabalho por conta própria”, além de detectarem o aumento dos chamados “desalentados”, figura recente nos noticiários econômicos, referindo-se àqueles trabalhadores que simplesmente desistiram de procurar nova colocação.
Economistas e pesquisadores contrários à linha de pensamento daqueles que cuidam da economia no governo federal sustentam que não é a flexibilização do mercado de trabalho que trará novos empregos, e sim o desenvolvimento econômico, coadjuvado pela formação técnica de nossos trabalhadores, de maneira a serem inseridos na chamada “indústria 4.0”. Aliás, para esses economistas, o mercado de trabalho brasileiro já é flexível e desorganizado, e o custo da mão de obra, baixíssimo[4].
De fato, o crescimento inexpressivo do Produto Interno Bruto em 2018 — 1,1%[5] — parece explicar melhor o desemprego avassalador vivenciado pelos brasileiros do que a regulamentação do mercado de trabalho que tanto incomoda a equipe econômica governamental.
Por outro lado, a par dessas claras constatações da ineficácia da reforma quanto ao objetivo de fomentar o pleno emprego, há sinais eloquentes de que as regras fixadas pela nova legislação trabalhista são desastrosas do ponto de vista prático.
A montadora Ford, por exemplo, encerrará as suas atividades na icônica cidade de São Bernardo do Campo (SP), com a consequente extinção de quase 3 mil empregos diretos e cerca de 24 mil indiretos[6].
Não são necessárias elucubrações mais severas para se perceber que a reforma não empreendeu qualquer incentivo à manutenção da atividade produtiva na mencionada empresa, muito menos foi capaz de resguardar os postos de trabalho a serem encerrados. Mas pior que isso é ter em conta que as novas regras facilitam o abuso do direito de as empresas extinguirem contratos de trabalho, na medida em que equiparam a dispensa coletiva à dispensa individual, no artigo 477-A da “nova CLT”[7], com o que, na prática, esvaziam a participação do sindicato na negociação coletiva envolvendo dispensas em massa, procedimento que em muito amenizava o impacto social por elas produzido.
Outro exemplo: a tragédia de Brumadinho vitimou centenas de empregados da mineradora Vale, além de moradores e visitantes do local. Para esses empregados, a questão é de típico acidente do trabalho, como previsto no artigo 19 da Lei 8.213/91[8], atraindo a competência da Justiça do Trabalho para conhecer dessas demandas e, de consequência, as limitações à indenização por danos morais ou extrapatrimoniais previstas na reforma.
O inciso IV do parágrafo 1º do artigo 223-G da CLT limita os valores a serem arbitrados a título de danos morais ao equivalente a 50 vezes o salário contratual do trabalhador[9], e o artigo 223-B do mesmo texto legal atribui exclusivamente ao trabalhador o direito de reclamar indenização por danos morais[10].
É de se imaginar a tremenda injustiça a ser cometida se interpretados esses dispositivos ao pé da letra. O horrendo acidente que tanta dor e sofrimento tem causado, até mesmo para quem assiste pela televisão às cenas de resgates de vivos e mortos, poderia ensejar aos empregados da Vale e seus dependentes indenizações trabalhistas em valores muito menores do que os arbitrados às demais vítimas e seus respectivos beneficiários, ou até mesmo afastar o direito de reclamá-las.
A despeito de tudo isso, a Presidência da República tem sustentado que a reforma ainda fez pouco e que será necessária uma nova modificação, ainda mais severa, que se implementaria pela adoção da chamada “carteira verde-amarela” — ao que parece, uma nova forma de contratação da força de trabalho, com direitos ainda mais reduzidos, direcionada aos jovens ingressantes no mercado de trabalho[11].
Com todo respeito, não há espaço para mais desregulamentação num mercado de trabalho que já é extremamente volátil, especialmente se considerada a adoção, pela reforma, do trabalho autônomo permanente (artigo 442-B da CLT[12]) e do trabalho intermitente (artigo 443, parágrafo 3º[13]).
Garantias empregatícias são necessárias à dignidade do trabalhador e o contrato de trabalho é o instrumento pelo qual elas se efetivam. Criar uma figura contratual “alternativa”, como forma de reduzir ainda mais a proteção social ao trabalhador, além de colidir com a Constituição, terá impacto profundo no próprio Estado Democrático de Direito.
O jurista Inocêncio Mártires Coelho define o Estado Democrático de Direito como “aquele Estado de Direito que se empenha em assegurar aos seus cidadãos o exercício efetivo não somente dos direitos civis e políticos, mas também e sobretudo dos direitos econômicos, sociais e culturais, sem os quais de nada valeria a solene proclamação daqueles direitos”[14].
Por outras palavras, não bastam sistemas sofisticados e quase infalíveis para a escolha de representantes, uma “urna eletrônica” inexpugnável, se ao povo — aí incluídos os trabalhadores — não forem propiciadas condições sociais e econômicas aptas à sua autodeterminação. O voto consciente passa, necessariamente, pela existência de condições dignas de subsistência.
Não se nega a necessidade de aprimoramento do sistema regulatório trabalhista, que de fato deve melhor se adequar aos avanços tecnológicos, sociais e econômicos. Mas também não se pode negar que um mínimo de direitos passíveis de serem plena e livremente exercitados pelos trabalhadores é imprescindível à própria estabilidade social.
A reforma trabalhista, que não foi adequadamente discutida nem pela sociedade nem pelo Congresso, já foi excessiva na flexibilização e até na retirada de direitos. É preciso muito cuidado para que as novas alterações propostas não ultrapassem os limites civilizatórios da utilização do trabalho humano.
[1]https://www.infomoney.com.br/mercados/politica/noticia/7589379/bolsonaro-diz-no-jn-que-trabalhador-tera-de-escolher-entre-direitos-e-emprego
[2] https://g1.globo.com/economia/noticia/nova-lei-trabalhista-vai-gerar-mais-de-6-milhoes-de-empregos-diz-meirelles.ghtml
[3] https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/02/27/desemprego-sobe-para-12-em-janeiro-diz-ibge.ghtml
[4] KREIN, José Dari; GIMENEZ, Denis Maracci; SANTOS, Anselmo Luis dos. Org. Dimensões Críticas da Reforma Trabalhista no Brasil. Campinas: Editora Curt Nimuendajú, 2018, p. 56-57.
[5] https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/02/28/pib-do-brasil-cresce-11-em-2018.ghtml
[6]https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2019/02/21/internas_economia,738913/fechamento-de-fabrica-da-ford-pode-acabar-com-24-mil-vagas-de-trabalho.shtml
[7] Art. 477-A. As dispensas imotivadas individuais, plúrimas ou coletivas equiparam-se para todos os fins, não havendo necessidade de autorização prévia de entidade sindical ou de celebração de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho para sua efetivação.
[8] Art. 19. Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço de empresa ou de empregador doméstico ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho.
[9] IV – ofensa de natureza gravíssima, até cinquenta vezes o último salário contratual do ofendido.
[10] Art. 223-B. Causa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica, as quais são as titulares exclusivas do direito à reparação.
[11] https://www.gazetadopovo.com.br/eleicoes/2018/carteira-de-trabalho-verde-e-amarela-o-que-ja-se-sabe-da-proposta-de-bolsonaro-8pf0onmn6sh7vqhotw372j6zj
[12] Art. 442-B. A contratação do autônomo, cumpridas por este todas as formalidades legais, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não, afasta a qualidade de empregado prevista no art. 3º desta Consolidação.
[13] § 3º Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria.
[14] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4. ed., São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 171
Levi Rosa Tomé é juiz do Trabalho em Itu (SP).
Revista Consultor Jurídico
Fonte:sintracimento.org.br