A ‘Era Biden’? pode ajudar a salvar a democracia brasileira
Leonel Cupertino
O ex-senador e ex-vice-presidente Joe Biden se tornou, neste fim de semana, o 46º presidente dos Estados Unidos da América. Não bastasse isso, é preciso ressaltar que o político de quase 78 anos de idade será o mais velho a assumir a Casa Branca, e também o mais votado presidente de toda a história republicana dos Estados Unidos – que já dura mais de dois séculos.
O democrata venceu em estados-chave que são símbolos do poderio republicano – Arizona e Georgia, sobretudo. O velhinho simpático tomador de sorvete – como é conhecido em Delaware, estado que representou por 36 anos no senado estadunidense – terá ao seu lado a primeira-vice-presidente mulher e negra de toda a história daquele país. Um fato curioso, afinal, ele havia sido entre 2009 e 2013 o vice-presidente do primeiro presidente afro-americano da história dos Estados Unidos.
Mas, afinal, por que nós brasileiros estivemos tão interessados nessa disputa? É importante destacar o sentimento de frustração da esquerda brasileira com a derrota nas eleições presidenciais de 2018. Para muitas dessas pessoas, qualquer vitória de um candidato minimamente progressista já é motivo para comemorar. E, para eles, não faltaram motivos nos últimos tempos, no nosso continente: a direita saiu derrotada da Argentina em 2019; a esquerda voltou a vencer na Bolívia há poucos meses, após um golpe de Estado; e o Chile caminha para uma constituição cidadã, socialmente progressista e economicamente mais justa, com um olhar mais social e menos neoliberal. A vitória do pacato Joe Biden sobre o efusivo Donald Trump, que era tido como o sustentáculo da onda precursora de vitórias da extrema-direita pelo mundo, representa segurança e recomeço.
Feitas essas primeiras ressalvas, é importante que os mais entusiasmados não se enganem, pois as cenas deploráveis de um apático e derrotado Donald Trump, que insiste em não aceitar o resultado da eleição em seu país, estão servindo de laboratório ao presidente brasileiro. Jair Bolsonaro tem no bilionário muito mais que um ídolo: tem um espelho. Tudo o que está sendo feito lá, entre alegações sem comprovação, tweets inflamados e discursos mentirosos, será replicado aqui caso o chefe do Executivo veja a sua sucessão em risco.
Faz-se necessário afirmar que, ao contrário dos Estados Unidos, cujas instituições são respeitadíssimas e praticamente inabaláveis – instituições essas que, aliás, começaram a tratar Joe Biden como presidente desde a quinta-feira (5) – o Brasil sofre de uma fragilidade crônica. O aparato institucional brasileiro parece não ter a mesma capacidade de responder a ataques ao estilo daqueles que Donald Trump vem tentando fazer aos Estados Unidos. O medo de muitos democratas legítimos – à direita e à esquerda – reside no fato de que o nosso presidente já deu sinais, no plural, de que em caso de derrota eleitoral não entregará o poder ao sucessor.
Bolsonaro precisa entender, antes de tudo, que o poder não é físico, mas simbólico. Quando Donald Trump faz ameaças afirmando que não sairá da Casa Branca, ele apega-se ao maior símbolo material do poder americano, mas isso nada importará a partir do momento que legalmente o Estado for transferido para as mãos de seu novo mandatário – eleito pelo voto democrático de milhões e milhões de estadunidenses. E aqui, sinceramente, espero que o presidente brasileiro compreenda, com o fracasso do colega do norte, que tweets mal educados e ameaças à legalidade não serão capazes de manter ninguém com o poder político nas mãos. É preciso legitimidade, e essa legitimidade só é conquistada com a confiança da maioria das pessoas em sua figura e naquilo que você representa.
Mas, afinal, por que Joe Biden garante segurança à democracia brasileira? Trabalhando com a provável hipótese de que Bolsonaro repita as cenas lamentáveis que assistimos Donald Trump protagonizar durante a apuração dos votos nos Estados Unidos, por aqui o chefe do Executivo só poderá oferecer qualquer tipo de resistência se tiver ao seu lado, ou o Congresso Nacional, ou o Poder Judiciário, ou as Forças Armadas. No caso do primeiro elemento, dificilmente políticos de saída darão vazão às loucuras de um presidente derrotado nas urnas. É a máxima do “rei morto, rei posto”, tão repetida na política; no segundo caso, em 2022 o presidente brasileiro terá nomeado, na melhor das hipóteses, apenas 2 dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal, e não constituirá maioria para uma intervenção jurídica capaz de mudar substancialmente as regras do jogo; e o terceiro elemento – os militares – esse sim, pode impor ao país um regime de exceção vintage, ao melhor estilo de 64-85.
Ocorre que no último caso, o Golpe Militar de 1964 foi orquestrado e carimbado pelos Estados Unidos. Não quero, e não vou nem entrar nas filigranas internacionais que ampararam os eventos daquela madrugada de 31 de março / 1º de abril, mas sim resgatar que, ainda que o presidente brasileiro conte com o Exército, para permanecer no poder após ser derrotado pelas urnas, Bolsonaro não encontrará endosso e nem apoio físico, tático e operacional das maiores potências do mundo – China, Estados Unidos e Rússia. Se isso acontecer, para além do fato de assistirmos os nossos vizinhos próximos fecharem as fronteiras e romperem relações conosco, na prática, parece improvável que o reconhecimento de Hungria, Eslovênia, Polônia, Emirados Árabes, Arábia Saudita e mais meia dúzia de repúblicas ditatoriais do leste europeu e regimes absolutistas do Oriente Médio sejam capazes de passar ao mundo a imagem de que “tudo vai bem” no Brasil. Lembrando sempre que, por tabela, a vitória de Joe Biden também deve afastar o presidente brasileiro do premiê israelense. Netanyahu revisitará suas prioridades e dançará conforme a música do mais novo presidente americano.
Ao posicionar-se à extrema-direita no espectro político-ideológico, Bolsonaro acreditou, visando permanecer no poder, que poderia contar com alguns porta-aviões ancorados próximos ao litoral brasileiro, mas correrá o risco, mesmo, de receber uma chuva de sanções econômicas que fariam investidores simplesmente desaparecerem, jogando o Brasil no abismo econômico, sem superpotências para sustenta-lo, afinal, ele não irá querer fazer um turn over à esquerda, para receber as bênçãos chinesas e russas. Sozinhos, os militares brasileiros não terão elementos suficientes para “bancar” um déspota no poder.
Na prática, sem Donald Trump, cai o sustentáculo retórico da chamada “ala ideológica” que via no comportamento do bilionário uma bússola. Isso não significa que eles – a extrema-direita – não lançarão mão de todo o tipo de subterfúgio, inclusive fisicamente violento, para permanecer no poder. Mas, esse terrorismo todo de nada adiantará porque, afinal, sem legitimidade não há governo.
Portanto, se quiser permanecer ocupando o terceiro andar do Palácio do Planalto após 2022, é bom Jair Messias Bolsonaro ir adotando um tom político ainda mais pragmático – interna e externamente. Mas, pelo visto já começamos mal: todos os presidentes da América do Sul cumprimentaram o democrata Joe Biden pela sua vitória em menos de vinte e quatro horas. A única exceção é o Brasil, justamente o maior e mais rico país do continente. Com essa demora num simples gesto de reconhecimento do resultado das eleições estadunidenses por parte do Brasil, o presidente Bolsonaro coloca os interesses diplomáticos (e econômicos) do nosso país de lado, neste momento, apenas para prestar apoio às sandices de Donald Trump.
Para as relações entre Estados Unidos e Brasil, a vitória de Biden terá um efeito colateral imediato: o embaixador dos Estados Unidos, Todd Chapman, será substituído. É difícil avisar se seria adequado que o Itamaraty fizesse o mesmo, mas será possível ao nosso atual chanceler, Ernesto Araújo, "sobreviver" no cargo, caso consiga dançar a valsa democrata.
A situação mais complicada na Esplanada dos Ministérios é mesmo do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Biden tem um compromisso com a geração de energia limpa e com a preservação do Meio Ambiente. Se o Brasil não cuidar da Amazônia e permanecer com esse discurso fajuto de 'atentado à soberania', poderá sofrer sanções econômicas graves – e aí a situação econômica do nosso país, que já é ruim, vai ficar ainda pior.
Entretanto, particularmente, eu não me iludo acerca da relação imperialista que os Estados Unidos continuarão a ter em muitos lugares do mundo. Nesse sentido, parte da esquerda brasileira tem razão nas suas muitas ressalvas ao novo mandatário do país mais poderoso do mundo. Apenas a título de exemplo, a situação segue cronicamente complicada no Oriente Médio, como sempre foi, e todo aquele imbróglio comercial com a China não será resolvido facilmente — o presidente eleito, nesse aspecto, não tem uma visão muito diferente do republicano derrotado.
Mesmo assim, a vitória do democrata Joe Biden é simbólica do ponto de vista político e ideológico, uma vez que representa o renascimento daquela democracia genuinamente liberal. O mais importante de tudo, é que o resultado nas eleições deste ano sepulta o maior emissor de uma perigosíssima corrente ideológica conservadora e neopopulista que pouco a pouco ganhava força em outros continentes. Com Trump fora da Casa Branca, essa gente não terá mais força institucional para fazer do mundo uma avalanche de despotismo e autocracia.
A vitória de Biden é, por tabela, a vitória de todos aqueles que acreditam na democracia genuína, não nesse projeto maledicente apregoado por políticos que mais se assemelham a ditadores, como é o caso do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro. Num ano tão difícil como esse, Biden representa de fato uma luz no fim do túnel de todo o ocidente.
Em seu discurso já como presidente eleito, Biden pregou a união, a pacificação, a conciliação e o diálogo, sem que essas características sejam vistas como algum tipo de defeito. Em outras palavras: é possível ser grande, forte e unido. O ponto alto, na minha singela opinião, esteve no destaque que o presidente eleito fez à composição de uma coalizão que uniu negros e brancos; suburbanos e classe média; rurais e cosmopolitas; gays e heteros; homens e mulheres. Espero que os políticos brasileiros tenham captado.
Ao fim de todo esse processo eleitoral conturbado, e que afeta todas as democracias do mundo, sobretudo àquelas localizadas no continente americano, como é o caso do Brasil, fica a impressão para todos nós que o estilo neopopulista adotado por líderes como Donald Trump e replicado por Jair Bolsonaro se transformou em algo anacrônico. Diante de tudo isso há, sim, motivo para comemorar.
*Bacharel em Ciência Política pelo Centro Universitário do Distrito Federal (UDF) e Assessor Legislativo na Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais.
Fonte: Diap – https://www.diap.org.br/index.php/noticias/artigos/90080-a-era-biden-pode-ajudar-a-salvar-a-democracia-brasileira
Fonte:sintracimento.org.br