Trabalho doméstico escravo no século 21
REFLEXÕES TRABALHISTAS
Em pleno século 21, quando a atenção da sociedade e, especialmente, do mundo do trabalho se volta para assuntos como a 4ª Revolução Industrial e a Indústria 4.0; os desafios da inteligência artificial, da nanotecnologia e da robótica; os processos de robotização; e a interferência dos algoritmos nos contratos de trabalho, ainda vemos inúmeras reportagens, processos e condenações relativas à prestação de serviços em condições análogas à escravidão.
O trabalho forçado contemporâneo é uma chaga mundial, presente em várias partes do globo, que se concentra principalmente, no sudeste da Ásia, na África setentrional e ocidental e em partes da América do Sul. A OIT estima que 20,9 milhões de pessoas são vítimas de trabalho forçado em todo o mundo. Destas, 55% são mulheres e 45% são homens. As crianças constituem cerca de um quarto de todas as vítimas.
No Brasil, segundo dados obtidos pela OIT Brasil [1], entre 1995 e 2020 mais de 55 mil pessoas foram libertadas de condições de trabalho análogas à escravidão. A maioria dos trabalhadores libertados são homens e tradicionalmente atuam no setor da pecuária bovina. Entretanto, as operações de fiscalização têm se intensificado nos centros urbanos e em 2013, pela primeira vez, a maioria dos casos não ocorreu em ambientes rurais.
Na cidade de São Paulo, por exemplo, a capital do estado que detém o maior PIB entre os estados brasileiros, o número de trabalhadores resgatados de situações de trabalho análogo ao escravo aumentou quase 200%. Em 2021, foram resgatados 47 trabalhadores, enquanto em 2020 foram resgatados 16 trabalhadores nessas condições.
Nas áreas urbanas, uma das modalidades de trabalho forçado mais encontradas foi o trabalho escravo doméstico, que atinge principalmente mulheres negras. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2019, mais de seis milhões de pessoas atuaram nos serviços domésticos. Desse total, 92% são mulheres — em sua maioria negras, de baixa escolaridade e oriundas de famílias de baixa renda.
Em junho de 2021, uma empregada doméstica foi resgatada de condições análogas à escravidão em São José dos Campos (SP), em operação conjunta do Ministério Público do Trabalho (MPT), da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) e da Polícia Federal (PF). A mulher, à época com 46 anos de idade, passou mais da metade da vida no emprego, tendo começado a trabalhar aos 13 anos de idade para substituir a mãe nas funções domésticas da casa. Segundo as apurações, ela não recebia salário e trabalhava de segunda a domingo, sem folgas ou férias. O inquérito também indicou que ela sofria restrições de liberdade e era impedida de conviver socialmente durante o tempo que trabalhou no local (mais de duas décadas).
A história de Madalena não foi diferente. Resgatada em novembro de 2020, Madalena começou suas atividades como doméstica aos oito anos de idade para uma família abastada de Patos de Minas, em Minas Gerais. Ela não tinha registro, não recebia salário, não gozava férias ou descansos semanais. Viveu reclusa e sob a vigilância dos patrões por mais de 30 anos. O caso de Madalena tomou conta do noticiário e comoveu o Brasil.
Em janeiro deste ano, na cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte, uma mulher foi resgatada após 32 anos de trabalho como empregada doméstica. Segundo as informações obtidas no resgate, a trabalhadora teria iniciado a prestação de serviços ainda adolescente. Era responsável pelos serviços domésticos e em troca de seu trabalho, recebia moradia, alimentação e vestuário. Nunca recebeu salário ou gozou férias e descansos semanais. Trabalhava em condições degradantes, com jornadas exaustivas, além de sofrer abuso e assédio sexual do empregador.
A mesma operação também resgatou outra mulher em Natal. A trabalhadora analfabeta, com 52 anos de idade, atuava como doméstica e cuidadora havia mais de cinco anos. Permanecia 24 horas à disposição da empregadora, inclusive à noite, dormindo num colchão, ao lado da patroa. Descansava apenas a cada 15 dias, trabalhava nos feriados e recebia cerca de R$ 500 por mês.
Uma semana após a operação ocorrida no Rio Grande do Norte, mais duas mulheres foram resgatadas, na Paraíba e no Rio Grande do Sul, em situações muito similares às anteriores. Em Campina Grande (PB), uma mulher de 57 anos, supostamente tratada como filha, era obrigada a realizar serviços domésticos sob a falsa alegação de que “era da família” e seria adotada. Em Campo Bom (RS), a vítima, com 55 anos e deficiência intelectual, foi resgatada após 40 anos trabalhando sem salário e sob xingamentos, agressões físicas e ameaças, dentro de casa e na frente dos vizinhos, de acordo com a investigação.
Como se viu, a pobreza de muitos, a concentração de renda entre poucos, aliadas à ausência de atuação do Estado no combate ao analfabetismo e à cultura escravocrata e patriarcal, permitem e facilitam a ocorrência da escravidão contemporânea. A total falta de perspectivas leva crianças e adultos a se submeterem a condições degradantes para sobreviver.
No âmbito do trabalho escravo doméstico, infelizmente ainda existem pessoas que se aproveitam da situação de desamparo de crianças e adolescentes para obter a prestação de serviço doméstico gratuito, sob a falsa e equivocada ideia, por vezes divulgada socialmente, de que estão cuidando e assistindo aqueles menores.
Segundo a historiadora e escritora Marília Bueno de Araújo Ariza [2], “mesmo após a abolição, em 1888, mulheres e homens negros continuaram sendo servos ou escravos informais, o que também deixou seu legado no mercado de trabalho”, já que hoje as domésticas são, em sua grande maioria, afrodescendentes porque “eram essas pessoas que ocupavam os postos de trabalho mais aviltados na saída da escravidão e na entrada da liberdade no pós-abolição”.
Assim, o Brasil atual herdou do passado colonial, imperial e escravista uma profunda desigualdade na sociedade e um racismo estrutural, que não foram resolvidos.
A Convenção nº 182 da OIT, ratificada e adotada pelo Brasil em 2000, por meio do Decreto 6.481/2008, proíbe as piores formas de trabalho infantil e determina a ação imediata dos estados-membro para sua eliminação. O decreto resultou na edição da “Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil” (conhecida como Lista TIP), que classifica as atividades e locais prejudiciais à saúde, à segurança e à moral, prevendo mais de 90 tipos de trabalho de risco. Entre tais atividades, o item 76 indica o trabalho doméstico, com a descrição dos prováveis riscos ocupacionais e repercussões à saúde.
Ainda de acordo com a referida convenção internacional, a Lei Complementar nº 150, de 1º de junho de 2015, no parágrafo único de seu artigo 1º estabelece que é vedada a contratação de menores de 18 anos para o desempenho de trabalho doméstico.
Portanto, o trabalho doméstico só pode ser realizado por pessoas maiores de 18 anos e deve observar todas as regras e determinações previstas na Lei Complementar nº 150/2015. O registro na CTPS do empregado é obrigatório desde o início das atividades, assim como a fiscalização da jornada de trabalho que é de responsabilidade do empregador.
Desse modo, é fundamental a união dos órgãos públicos estatais e da própria sociedade como um todo, para a erradicação do trabalho escravo no país. Aliás, foi com esse objetivo que o Ministério Público do Trabalho (MPT) formalizou no início deste mês sua adesão ao Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas de Trabalho.
O fluxo tem como objetivo garantir o atendimento especializado e sistematizado às vítimas resgatadas de condições análogas à escravidão. A iniciativa foi regulamentada pela Portaria nº 3.484, de 6 de outubro de 2021, e estruturada nos seguintes estágios de atuação: 1) da denúncia ao planejamento logístico da operação; 2) o resgate dos trabalhadores, com a obtenção de provas da situação encontrada; e 3) o pós-resgate, quando o trabalhador deverá receber atendimento especializado para superar a situação de vulnerabilidade social.
Afinal, não é crível que em 2022 a sociedade ainda tenha que se preocupar e debater medidas para o combate da escravidão contemporânea.
Fabíola Marques é advogada, professora da PUC na graduação e pós-graduação e sócia do escritório Abud e Marques Sociedade de Advogadas.
Revista Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2022-fev-11/reflexoes-trabalhistas-trabalho-domestico-escravo-seculo-21
Fonte:sintracimento.org.br