Negociação coletiva, reforma trabalhista e o sufocamento do Direito do Trabalho
Marcos Neves Fava
A prevalência do negociado sobre o legislado, abonada pelo STF, sufoca o Direito do Trabalho, no momento em que os sindicatos estão esvaziados economicamente, em razão da reforma de 2017.
Há comemorações pela decisão do STF no tema 1046 da repercussão geral, que proclamou a prevalência do negociado sobre o legislado com a tese: “são constitucionais os acordos e as convenções coletivas de trabalho que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis”.
A interpretação do Supremo assim se resume: (a) valem acordos sobre a Lei, (b) ainda que sem a demonstração de vantagens compensatórias, desde que respeitados (c) os direitos absolutamente indisponíveis.
Afaste-se, por agora, o problema que a “tese” cria com a invenção de direitos “absolutamente” indisponíveis, frente aos “relativamente” disponíveis, que já complicará bem a vida dos envolvidos na aplicação do Direito.
Olhemos, neste primeiro instante, para o fato de que o ato jurídico de transação, gênero do que os acordos coletivos trabalhistas são espécie, configura-se justamente pela presença de concessões recíprocas, ou “vantagens compensatórias” para a retirada ou afastamento de direitos. Sem a concessão recíproca, em tese, não haveria acordo/transação. Nem sob o regramento do Direito Civil, essa ideia valeria um tostão furado. É possível pensar-se num acordo em que um obrigado pagará ao outro 100, sem qualquer contrapartida? Ou, perguntado de outro modo, é isso um acordo? Não. Não é um acordo. E não porque o Direito do Trabalho o proíba, mas porque o Direito comum o inviabiliza, nos termos do artigo 840, do Código Civil.
Agora, avancemos, ou regressemos, para observar em que contexto jurídico essa “evolução” foi cometida.
O sistema sindical brasileiro é, reconhecem-no todos, inadequado. Mas vige como tal há décadas e estava estruturado em três pilares, que se complementavam com a participação excepcional da Justiça do Trabalho: (1) unicidade sindical, (2) representação universal e (3) financiamento compulsório.
O que se traduz assim: (1) só há um sindicato de cada categoria (econômica ou profissional) em certa base territorial; nem o sindicalizado, nem o sindicato escolhem-se reciprocamente, porque a Lei o faz por eles; (2) o sindicato representa os interesses individuais e coletivos da categoria, não dos sindicalizados; e, por isso, (3) recebe remuneração de todos os integrantes da categoria, que, ao cabo, beneficiam-se da atuação da entidade.
Nesse ambiente, frustrada a negociação coletiva, isto é, se as partes, para prevenir ou solucionar os litígios, não conseguissem resolver suas questões mediante concessões recíprocas (transação), a crise viria ao Judiciário, que estava autorizado a “criar normas” para aplacar o litígio (artigo 114, § 2º, CRFB, antes da EC45/04).
A açodada, antidemocrática e tecnicamente inepta reforma trabalhista de 2017 cassou o financiamento obrigatório. Só ele, mantendo os dois outros pés do sistema.
O sindicato, agora sem receber nada de ninguém, representa universalmente a todos.
Quem é que vai optar por se associar, se o resultado das lutas do sindicato atinge, indistintamente, a sindicalizados e não sindicalizados? Antes disso, entre 1980 e 2003, a sindicalização dos trabalhadores no mundo já despencara de 44% para 25%, segundo a OIT. No Brasil de hoje: depois da “reforma” e até 2019, a perda foi de 22% dos sindicalizados (https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/08/26/brasil-perdeu-217percent-dos-trabalhadores-sindicalizados-apos-a-reforma-trabalhista-diz-ibge.ghtml), chegando-se ao patamar de 11,2% do Trabalho.
De outro lado, o chamado “poder normativo”, que contava, há várias Constituições, com autorização expressa, reduziu-se drasticamente com a Emenda 45 de 2004. A Justiça não pode mais “criar normas” no caso de impasse. Sequer o sindicato que se julgue prejudicado com a negociação pode reclamar ao juiz, sem que haja “comum acordo” com aquele que o prejudicou.
Claro e simples: o sindicato que se encontra economicamente fragilizado, senão inviabilizado, com as bênçãos do Supremo, pode mitigar os limites da Lei, No cenário anterior, a doutrina tratava da autonomia coletiva da vontade, comparando-a com a ausência de autonomia individual do trabalhador, porque o sindicato, diferente do empregado, não era hipossuficiente em relação à contraparte negociadora. Não há como sustentar essa verdade nos tempos atuais. O sindicato estará dependente do resultado da negociação, para seu próprio sustento.
No novo universo criado pela “evolução”, as garantias legais podem ser minimizadas ou eliminadas, como resultado da negociação entre Capital e o sindicato operário, que se aplicará em inserir, nos acordos, cláusulas que lhe garantam alguma remuneração – como as taxas negociais e quejandos. Passam a ser três, então, os atores a defender cada um o seu pirão: classe trabalhadora, empregadores e sindicatos operários.
O quadro é de puro cinismo, como já foi dito: “É curiosa a liberdade cultivada pelo cinismo: ela permite que o trabalhador decida se vai ou não contribuir financeiramente com o sindicato, porém, obriga que o trabalhador seja representado pelo sindicato. Sim, “pelo”: não é por um sindicato qualquer, ou mesmo um sindicato que o trabalhador possa escolher, mas antes, por aquele sindicato definido previamente pelo Estado. O trabalhador tem direito de decidir se vai financiar ou não a entidade que obrigatoriamente negociará seus direitos e que poderá fazê-lo, inclusive, abaixo do patamar mínimo civilizatório positivado na legislação trabalhista” (YAMAMOTO, Paulo de Carvalho. “Qual liberdade? O cinismo como figura retórica da Reforma Trabalhista: o caso da contribuição sindical”. In SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; SOUTO SEVERO, Valdete. Resistência: aportes teóricos contra o retrocesso trabalhista. 1ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2017. p. 440).
Liberdade para piorar a condição social do trabalhador, ao que parece, soa contrária à promessa do caput do artigo 7º, da Constituição: “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”. Não parece difícil ver que esse tipo de arranjo das forças sociais não criará, também como promete a Carta, uma sociedade mais “justa, livre e solidária”.
Marcos Neves Fava
Bacharel, mestre e doutor em direito pela USP, professor da FGVLaw, da Faculdade de Direito de São Paulo da FGV e juiz titular da 89ª vara do trabalho de São Paulo.
Fonte:sintracimento.org.br