Inconstitucionalidade da ‘PEC das Praias’: riscos a direitos fundamentais e à soberania
OPINIÃO
A proposta de emenda à Constituição que, na Câmara dos Deputados é identificada pelo nº 39/2011 e que hoje encontra-se em tramitação no Senado com o nº 3/2022, popularmente conhecida como “PEC das Praias”, possui um texto curto, mas que afeta uma série de dispositivos constitucionais, especialmente no que tange a direitos fundamentais e à soberania nacional.
Em uma análise inicial, a proposta de privatização das praias, implícita na chamada PEC das Praias, levanta sérias preocupações sobre a limitação do acesso, especialmente para as pessoas de menor renda. A privatização de áreas que historicamente são de uso comum pode transformar um direito garantido a todos em um privilégio acessível apenas a poucos.
Isso não só ameaça o direito ao lazer e ao bem-estar das populações mais vulneráveis, mas também contraria o princípio constitucional de que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, incluindo as praias, que são bens de uso comum do povo. Este aspecto da PEC tem sido amplamente destacado na mídia, refletindo a gravidade da questão e a necessidade de um debate aprofundado sobre as implicações sociais e jurídicas de tal medida.
Dessa forma, além do direito ao lazer, garantido expressamente no artigo 6º da Constituição como um direito social, a questão ambiental também é essencial. A mencionada proposta coloca em risco e fragiliza significativamente a fiscalização e a preservação dessas áreas, pois não estabelece claramente como esses processos serão conduzidos.
Com a possibilidade de múltiplos proprietários, a PEC falha em definir de maneira adequada quem seria responsável pela defesa do meio ambiente. Essa indefinição pode resultar em danos irreparáveis aos ecossistemas costeiros, já que a falta de uma supervisão eficaz e coordenada pode permitir práticas prejudiciais que comprometam a biodiversidade e a integridade ambiental das praias.
A CF/88 é clara em seu artigo 225, caput, quando expressa que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” e ainda quando, em seu §1º, proíbe práticas que possam colocar em risco a fauna e a flora.
Examinando o texto da PEC, o seu primeiro artigo diz que “as áreas definidas como terrenos de marinha e seus acrescidos passam a ter sua propriedade”[1], ou seja, os terrenos de marinha que são previstos na CF/88 como bens da União, com a aprovação da PEC, teriam novos proprietários.
A União apenas teria uma limitada parcela, visto que o artigo 1º, I dispõe que “continuam sob o domínio da União as áreas afetadas ao serviço público federal, inclusive as destinadas à utilização por concessionárias e permissionárias de serviços públicos e a unidades ambientais federais e as áreas não ocupadas”. Nos incisos seguintes há a previsão das áreas pertencerem aos estados, aos municípios e aos particulares que já ocupam as áreas, inclusive podendo essa transferência de titularidade ser de forma gratuita.
O artigo 2º ainda detalha que “fica vedada a cobrança de foro e de taxa de ocupação das áreas de que trata o artigo 1º desta emenda constitucional, bem como de laudêmio sobre as transferências de domínio, a partir da data de publicação desta emenda constitucional”, [2] o que indica que além da transferências a particulares, por exemplo, poder ser gratuita, os valores que hoje são arrecadados pela União através daqueles que ocupam essas áreas já não seriam mais cobrados, resultando em uma significativa queda na arrecadação e consequente queda nos investimentos em políticas públicas.
A título exemplificativo, em 2021, a União arrecadou mais de R$513 milhões com laudêmios, foros e taxas de ocupação. [3]Outra questão igualmente relevante é quanto à soberania nacional. No artigo 1º, I, da CF/88, a soberania é o primeiro dos fundamentos do Estado democrático de direito. Em seguida, no artigo 4º, I, temos como princípios que regem as relações internacionais a “independência nacional” e, no inciso VI do mesmo artigo, a previsão da “defesa da paz”. Além disso, o artigo 21, III, da Carta Magna, prevê que compete à União “assegurar a defesa nacional”.
A temática da soberania e da defesa nacional foi abraçada de forma tão relevante pelo legislador constituinte que há a previsão, no artigo 91, CF/88, do Conselho de Defesa Nacional, o qual é órgão de consulta do presidente da República para os assuntos relacionados à soberania nacional e à defesa do Estado democrático,
Cautela com questões de soberania
Já que decisões tão relevantes que envolve a soberania nacional são de competência privativa do chefe do Executivo, como decretar estado de defesa e estado de sítio, declarar guerra e celebrar a paz, com autorização ou referendo do Congresso nacional nesses últimos casos, considera-se adequado que decisões que possam afetar a soberania nacional sejam tomadas com cautela.
Com uma possível aprovação da PEC das Praias, observa-se um enfraquecimento significativo da soberania nacional devido à retirada da titularidade da União sobre os terrenos de marinha, deixando o Estado brasileiro vulnerável. Esses terrenos são estratégicos não apenas por seu valor econômico e ambiental, mas também por sua localização ao longo da costa brasileira, desempenhando um papel crucial na defesa das fronteiras marítimas brasileiras.
A perda desses terrenos compromete a capacidade do Estado de exercer controle efetivo sobre áreas costeiras essenciais para a segurança nacional. Ademais, a fragmentação da propriedade dificulta a coordenação de esforços de defesa, tornando as fronteiras mais suscetíveis a ameaças externas e internas. Esta mudança pode resultar em uma gestão descoordenada e menos eficaz, colocando em risco a integridade do País.
Sobre a soberania, é preciso lembrar que é um atributo do Estado federal, da União. Enquanto os Estados-membros são dotados de autonomia. Conceitos que não se confundem. [4]
Além disso, a inconstitucionalidade da proposta se torna ainda mais evidente quando se considera o artigo 60, §4º, inciso IV, da Constituição, que trata das cláusulas pétreas. Este dispositivo protege o núcleo essencial do texto constitucional, vedando a existência de proposta de emenda à Constituição que pretenda abolir direitos e garantias individuais.
E embora o texto contenha o termo “individuais”, a doutrina e a jurisprudência são claras na interpretação que abrange direitos coletivos, políticos, difusos. Como explica Barroso [5], “E mesmo os direitos difusos, como alguns aspectos da proteção ambiental, são fundamentais por estarem direta e imediatamente ligados à preservação da vida”.
Aos que defendem a aprovação do referido projeto de emenda à Constituição, há a argumentação de que essa alteração constitucional beneficiaria os que mais precisam. O relator da PEC no Senado, o senador Flávio Bolsonaro, considera que o governo poderia arrecadar mais impostos com possíveis novos resorts e hotéis a serem construídos, assim como elevar a oferta de empregos. [6]
Portanto, após a análise dos dispositivos constitucionais e dos direitos fundamentais afetados pela PEC, bem como dos argumentos apresentados em sua defesa, conclui-se que a proposta é superficial e não demonstra benefícios claros ao Estado brasileiro. Pelo contrário, a PEC fere ostensivamente a Constituição e suas cláusulas pétreas. Sua inconstitucionalidade é evidente, pois compromete direitos e garantias fundamentais, além de enfraquecer a soberania nacional. Dessa forma, a PEC não pode ser considerada uma medida benéfica ou constitucionalmente válida.
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Referências
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. – 12. ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2024.
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. – 19. ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2024.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 5 de jun. de 2024.
G1. ‘Nada muda’ para as praias, diz Flávio Bolsonaro sobre PEC dos terrenos de marinha; especialistas temem dificuldade de acesso da população à beira-mar. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/blog/julia-duailibi/post/2024/06/05/entrevista-flavio-bolsonaro-pec-das-praias.ghtml>. Acesso em 06 de jun. de 2024.
PIMENTEL, Felipe. Laudêmio: entenda o funcionamento e destino da taxa paga nas transações imobiliárias em Petrópolis. 2022. Disponível em: https://www.ufrgs.br/humanista/2022/02/28/laudemio-entenda-o-funcionamento-e-destino-da-taxa-paga-nas-transacoes-imobiliarias-em-petropolis/>. Acesso em 5 de jun. de 2024.
Proposta de Emenda à Constituição nº 3, de 2022. Senado Federal. Disponível em: < https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/151923>. Acesso em: 5 de jun. 2024.
[1] Proposta de Emenda à Constituição nº 3, de 2022. Senado Federal. Disponível em: < https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/151923>. Acesso em: 5 de jun. 2024.
[2] Proposta de Emenda à Constituição nº 3, de 2022. Senado Federal. Disponível em: < https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/151923>. Acesso em: 5 de jun. 2024.
[3] PIMENTEL, Felipe. Laudêmio: entenda o funcionamento e destino da taxa paga nas transações imobiliárias em Petrópolis. 2022. Disponível em: https://www.ufrgs.br/humanista/2022/02/28/laudemio-entenda-o-funcionamento-e-destino-da-taxa-paga-nas-transacoes-imobiliarias-em-petropolis/>. Acesso em 5 de jun. de 2024.
[4] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. – 19. ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2024. p. 936.
[5] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. – 12. ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2024. p. 145.
[6] G1. ‘Nada muda’ para as praias, diz Flávio Bolsonaro sobre PEC dos terrenos de marinha; especialistas temem dificuldade de acesso da população à beira-mar. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/blog/julia-duailibi/post/2024/06/05/entrevista-flavio-bolsonaro-pec-das-praias.ghtml>. Acesso em 06 de jun. de 2024.