‘Dê a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus’
OPINIÃO
Os fariseus — religiosos e doutores da lei na época de Jesus Cristo —, descontentes com o número crescente de seguidores daquele “filho de carpinteiro” que se dizia o Messias, tentavam incriminá-lo por suas próprias palavras.
Assim, com o objetivo de ter provas contra ele e levá-lo para julgamento perante Roma, indagaram-lhe: “Qual é a tua opinião? É certo pagar imposto a César ou não?”. Então, Jesus vendo a malícia destes, pediu que lhe mostrassem a moeda usada para pagar o imposto, ao que lhe trouxeram um denário.
Assim, Jesus lhes perguntou: “De quem é esta imagem e esta inscrição?”, estes responderam “De César”. E Jesus então lhes respondeu: “Então, deem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,15-21).
No último dia 12/6/2024, a Câmara dos Deputados aprovou, em 23 segundos, regime de urgência para o Projeto de Lei 1.904/2024, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), o qual equipara o crime de aborto, gestação acima de 22 semanas, ao homicídio.
Chama a atenção a pretensão de alteração legislativa para tipificação do crime de aborto nos casos de estupro, quando a gestação ultrapassar o período acima, com a pena equiparada ao crime de homicídio simples, de 6 a 20 anos. É o que está previsto no artigo 5º do referido PL [1].
Com o devido respeito, alguns cristãos, principalmente evangélicos mais radicais, parecem ignorar as lições deixadas por Jesus Cristo, registrada expressamente nas escrituras sagradas. Fundamentalismo religioso não é fonte do direito. Nem poderia sê-lo!
Interferências religiosas
O Direito, como cediço, é ciência social, ou seja, diante de fenômenos sociais em mutação ou consolidados na sociedade (por exemplo, uniões estáveis homoafetivas, direitos das minorias, mulheres, negros, fake news, mídias digitais, etc.), impõe ao Poder Legislativo, órgão com legitimidade para fazê-lo, a regulamentação de tais matérias, com o objetivo de primar e contribuir com a pacificação social.
Não obstante, tem se verificado cada vez mais interferências religiosas em aludidos debates e, mais grave, que almejam alterar a realidade social pela exigência de não regulamentação daquilo que entendem ferir preceitos bíblicos, ou pior, pretensão de alteração da própria realidade por intermédio da lei; o que é duplamente estéreo.
Explica-se.
Os homossexuais não deixariam(ão) de se relacionar como casados, que são, gerando direitos, deveres recíprocos e reflexos patrimoniais, caso a união estável homoafetiva não fosse reconhecida; como o foi em 2011 pelo Supremo Tribunal Federal.
Da mesma forma, os aplicativos de transporte não seriam eliminados caso não houvesse regulamentação pelo poder público.
As mídias digitais, por sua vez, não deixarão de existir pelo fato de não haver regulamentação específica. Dentre muitos outros exemplos de realidades sociais hodiernas.Em outras palavras, o Direito simplesmente se amolda e regulamenta àquilo que é praticado na sociedade, e não o inverso. Ou seja, o Direito e, consequentemente, a legislação, é a expressão normativa daquilo que é fato, real e juridicamente relevante.
Impertinência
Portanto, independentemente da fé e inclinação pessoal de cada cidadão, a lei não pode se omitir em regulamentar ou alterar situações preexistentes e consolidadas no meio social. Inclusive, muito se diz do ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal, mas nitidamente o STF é obrigado a fazê-lo, em razão da flagrante omissão do Congresso Nacional.
Enfim…
Voltando à hipótese da criminalização do aborto em casos de estupro – sem mencionar aqui o princípio do retrocesso – é apenas mais do mesmo. Qual pai ou mãe obrigará sua filha a dar continuidade a uma gestação, decorrente de um estupro, só porque esta ultrapassou as 22 semanas? Nenhum, ou muito poucos! Assim, fica a resposta para a impertinência da mudança legislativa pretendida no Projeto de Lei 1.904/24.
Por fim, que os cristãos – evangélicos e outros – reflitam sobre a lição deixada por Jesus Cristo “dê César, o que é de César, e a Deus o que é de Deus”.
[1] Art. 5º O art.128 do Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único:
“Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico:
(…)
“Parágrafo único. Se a gravidez resulta de estupro e houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, não se aplicará a excludente de punibilidade prevista neste artigo.”