Conflitos entre a cesta básica nacional e a cesta básica tributária
JUSTIÇA TRIBUTÁRIA
Comenta-se que técnicos que estão à frente da reforma tributária classificam os tributaristas entre aqueles do bem e do mal, sendo estes últimos os que estão alegadamente contra a reforma tributária. Se for verdadeiro, trata-se de um erro de perspectiva, pois, uma vez aprovada a EC 132, em dezembro de 2023, a trajetória se tornou definitiva e nos resta, a todos, aperfeiçoá-la.
Este texto analisa o PLP 68, em trâmite na Câmara dos Deputados, com previsão de aprovação até 12 de junho de 2024, para que seja enviado ao Senado e concluída a fase legislativa ainda este ano. Trata-se de análise técnica, sem ser do bem ou do mal.
Constata-se existir uma espécie de bate-cabeças entre as diversas equipes governamentais que, de uma forma ou de outra, influem direta ou indiretamente nos aspectos tributários envolvidos, como será demonstrado.
A EC 132, em dezembro de 2023, criou no artigo 8º (cautela, pois se trata de norma não inserida no corpo da Constituição, constando apenas da referida EC) a Cesta Básica Nacional de Alimentos, que considerará a “diversidade regional e cultural da alimentação do País e garantirá a alimentação saudável e nutricionalmente adequada, em observância ao direito social à alimentação previsto no artigo 6º da Constituição Federal”, sendo a definição dos produtos que a comporão feita por lei complementar, com alíquotas de IBS e CBS reduzidas a zero.
Cesta básica
Em 5 de março deste ano, o presidente da República por meio do Decreto 11.932/24 (aqui) definiu cesta básica como o “conjunto de alimentos que busca garantir o direito humano à alimentação adequada e saudável, à saúde e ao bem-estar da população brasileira” (artigo 2º, I). Existe até mesmo um espaço federativo na norma para que Estados e Municípios possam orientar suas ações de acordo com as diretrizes fixadas (artigo 4º, §6º).
No dia posterior, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome editou a Portaria 966/24 (aqui), com uma relação, que denominou de “não exaustiva”, definindo os alimentos que deveriam compor tal Cesta Básica Nacional com dez grupos de alimentos: feijões (leguminosas); cereais; raízes e tubérculos; legumes e verduras; frutas; castanhas e nozes (oleaginosas); carnes e ovos; leites e queijos; açúcares, sal, óleo e gorduras; café, chá, mate e especiarias.
Ocorre que o PLP 68, em seu artigo 114 e Anexo I, traz uma lista esquelética para essa cesta básica, com apenas 15 alimentos, com forte dissonância em face daquela mencionada no Decreto 11.932, de março/24. Nela não consta, por exemplo, nenhuma carne ou ovos, e, de frutas, apenas cocos. De fato, os 10 grupos de alimentos previstos no Decreto ficaram reduzidos a apenas 15 produtos/alimentos no PLP 68.
Na justificativa oficial para essa escolha magérrima (Exposição de Motivos do PLP 68, itens 104 a 109) são apresentados 03 argumentos: (1) “priorização dos alimentos in natura ou minimamente processados e dos ingredientes culinários”; (2) “a priorização de alimentos majoritariamente consumidos pelos mais pobres”, e (3) “assegurar que os alimentos da atual Cesta Básica do PIS/Cofins tenham sua tributação reduzida, com exceção daqueles de consumo muito concentrado entre os mais ricos”. O texto resume o intuito oficial declarado: “distribuir o peso da carga tributária de maneira mais justa e, ao mesmo tempo, induzir boas práticas de alimentação saudável”.
Ora, se a ideia central é a de “induzir boas práticas de alimentação saudável”, a lista não deveria ser ampliada? Não conheço nada sobre nutrição, mas a ausência de proteínas essenciais, como carnes e ovos me parece estranha. E ter apenas cocos como frutas me parece insuficiente. Existe até mesmo um Ministério da Pesca e Aquicultura (aqui) no Brasil, e não consta nenhum peixe nessa relação fiscal favorecida. Parece ter prevalecido na lista tributária apenas os produtos que os “mais pobres” comem (argumento 2), e não o propósito de “induzir boas práticas de alimentação saudável” (resumo do argumento).
O ponto central é que há uma discrepância entre o Decreto 11.932/24 e o PLP 68, que deve ser revista, pois, tal como está, resta incongruente e incoerente.
Como solucionar esta questão?
No âmbito da política legislativa isso deve ser ajustado pelo Congresso durante o trâmite do PLP 68. Espera-se que os parlamentares não se intimidem com as ameaças de aumento da alíquota do CBS+IBS, pois, enquanto não for apresentada a memória de cálculo oficial pela qual se chegou ao alegado percentual de 27,5%, esse será apenas um chute oficial.
Posteriormente poderá ocorrer a discussão judicial perante o STF, pois não está sendo cumprida a previsão do artigo 8º da EC 132, de que a Cesta Básica Nacional de Alimentos considerará “a diversidade regional e cultural da alimentação do País”, o que simplesmente foi esquecido pelo PLP 68, configurando-se, prima facie, como uma flagrante inconstitucionalidade.