“Taxadd”?: sobre críticas descabidas a Haddad
Acordei hoje com vontade de defender o ministro Haddad. Não me ocorre sempre. Por diferenças de temperamento, fundamentalmente. Ao meu modesto juízo, Haddad peca por espírito excessivamente conciliatório. Preocupado, às vezes um tanto demais, em atender a plutocracia local e o sistema financeiro, o ministro da Fazenda pode cometer enganos.
Paulo Nogueira Batista Jr.*
Por exemplo, o governo foi colocado numa “camisa de sete varas”, quando se propôs arcabouço fiscal relativamente inflexível, com metas ambiciosas que agora cobram o seu preço. As metas para 2025 e anos posteriores foram flexibilizadas (acertadamente) e foram encontradas algumas válvulas de escape. Manteve-se, entretanto, a meta de déficit zero para 2024, com intervalo de tolerância de apenas 0,25 ponto percentual do PIB para cima e para baixo. As novas projeções da Fazenda indicam resultado primário no piso da meta, isto é, déficit em torno de 0,25% do PIB.
O problema permanece, portanto, induzindo o governo a bloquear ou reduzir gastos essenciais, notadamente investimentos públicos, o custeio da máquina federal e transferências sociais.
O leitor ou leitora se for mais “realista” (ou mais “conformista”?) dirá que a “correlação de forças” na sociedade, na mídia e no Congresso não permite nada de muito diferente. Pode ser. Porém, “correlação de forças” não é fato objetivo, fixado, que independa da ação dos governantes.
Críticas despropositadas a Haddad
Mas deixo de lado esses arroubos voluntaristas e entro no assunto que queria abordar hoje. É o seguinte: muitas das críticas a Haddad são descabidas. Inventaram agora que o ministro da Fazenda é taxador inveterado, cunhando a expressão simplória — “Taxadd”. O objetivo evidente é atingir não só o ministro Haddad, como também o presidente Lula.
Não vejo como sustentar essa crítica. Vamos dar rápida olhada em algumas estatísticas, sem a pretensão de esgotar o assunto e nem sequer de abordar todos os principais aspectos.
A carga tributária global no Brasil (incluindo governo central, estados e municípios) tem oscilado entre 31% e 33% do PIB desde 2010. A do governo central, entre 21% e 23% do PIB. De 2022 para 2023, primeiro ano do suposto ministro “Taxadd”, a carga do governo central caiu 1 pouco, de 22,4% para 22% do PIB.
Há razões para prever aumento do nível global de tributação em 2024? Não há clareza quanto a isso ainda. Sabemos que a arrecadação federal aumentou 8,7% em termos reais no período janeiro/maio relativamente ao mesmo período do ano de 2023 (incluídos fatores não recorrentes) e de 5,4% (sem considerar esses fatores). Esses fatores não-recorrentes incluem rendimentos da tributação de fundos financeiros exclusivos e no exterior e a calamidade no Rio Grande do Sul.
Esse crescimento da arrecadação é problema? Não me parece. Haveria por acaso condições de obter o ajustamento das contas do governo, pedido insistentemente pela mídia e pelo sistema financeiro, apenas cortando despesas? Sem aumentar a arrecadação e sem tocar nos juros da dívida? O que parecem querer a plutocracia e a mídia tradicional é que se faça o ajuste em cima das classes mais baixas, cortando transferências sociais como o BPC (benefício de prestação continuada) para pessoas com deficiência, supostamente para coibir irregularidades.
Gostariam, também, que os idosos pagassem a conta do ajuste, reduzindo a correção das aposentadorias e pensões. Porém, mantendo para os mais ricos as generosas isenções tributárias e generosos juros da dívida pública.
Se Lula for por esse caminho, pergunto, não descumprirá a promessa de campanha de colocar o pobre o orçamento e o rico no imposto de renda?
Privilégios dos ricos e super-ricos
Isso leva diretamente a outra pergunta importante: sobre quem recai eventual aumento de tributos? Estamos, obviamente, diante de questão distributiva.
Os ricos e super-ricos querem manter os seus diversos privilégios — isenções, desonerações, baixa tributação do patrimônio e das altas rendas, pagamentos de juros exorbitantes, para mencionar os mais evidentes. Não querem ouvir falar em dar contribuição. Quando se tenta corrigir a injustiça, ergue-se coro nos meios empresariais e na mídia reclamando contra a “voracidade tributária” do governo. É exatamente o que está acontecendo com Haddad. Passos discretos que ele vem dando são recebidos a pedradas.
Quem paga impostos no Brasil, recorde-se, são fundamentalmente os mais pobres, via impostos indiretos, e a classe média, via imposto de renda da pessoa física. Os ricos e super-ricos vivem num paraíso fiscal. Nunca foi implementado o Imposto sobre Grandes Fortunas, previsto na Constituição desde 1988. A tributação do patrimônio (terras, heranças e doações, entre outros) é baixa para padrões internacionais.
E, graças ao tratamento privilegiado das rendas do capital no Imposto de Renda (lucros e dividendos isentos na pessoa física, tributação basicamente proporcional dos rendimentos financeiros, além de isenção para determinadas aplicações), a alíquota efetiva do Imposto de Renda sobre faixas mais altas de rendimento é pequena, inferior à que se aplica à classe média baixa.
O governo Lula tem tentado enfrentar o problema. Elevou a faixa de isenção do Imposto de Renda para pessoas físicas, por exemplo. Taxou os fundos financeiros fechados e no exterior. Positiva também foi a iniciativa de Haddad de convidar o economista Gabriel Zuckman, especialista no assunto, para formular propostas ao G20 de tributação dos super-ricos em nível internacional.
Mas é preciso fazer mais. O último ponto, por exemplo, não deve servir de argumento ou motivo para adiar o que se pode fazer, em nível nacional, para aumentar a tributação dos super-ricos brasileiros. A suposição de que eles fugiriam para outros países é duvidosa. Afinal, onde encontrariam no mundo país que oferece remuneração financeira tão alta sobre ativos líquidos e sem risco real de crédito?
Haddad gastou capital político do governo nos seus 2 anos iniciais, encampando Reforma Tributária do consumo de tipo convencional, que já estava na pauta do Congresso. Essa tem seus méritos, mas não melhora significativamente a estrutura regressiva do sistema tributário e só tem efeitos positivos sobre a economia no longo prazo — no prazo em que, como dizia Keynes, estaremos mortos.
Agora, o governo terá, talvez, dificuldade de propor e implementar tributação mais justa da renda e do patrimônio. Os privilegiados comemoram, em particular.
Não reconhecem em público, porém. Ao contrário, promovem campanha para tachar Haddad de entusiasta do aumento da carga tributária…
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Versão resumida deste texto foi publicada na revista Carta Capital.
(*) Economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelo Brics em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais 10 países em Washington, de 2007 a 2015. Publicou pela editora LeYa o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém, segunda edição, 2021.
DIAP
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Fonte:sintracimento.org.br