Trabalho doméstico em condições análogas à escravidão e a imprescritibilidade do direito
REFLEXÕES TRABALHISTAS
O artigo 149 do Código Penal estabelece que é crime reduzir alguém à condição análoga à de escravo mediante a submissão a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas; à sujeição a condições degradantes de trabalho; e à restrição de locomoção do trabalhador.
No âmbito internacional, o Brasil assumiu o compromisso mundial de combater o trabalho escravo, ao aderir à Declaração Universal dos Direitos Humanos e à Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), além da assinatura das Convenções Internacionais da OIT, nº 29 e nº 105 concernentes ao trabalho forçado ou obrigatório e à sua abolição, dentre outras normas estrangeiras.
Porém, ainda é muito comum, no Brasil, a chamada escravidão moderna ou contemporânea, que vai além da privação da liberdade e se refere a situações de ofensa à dignidade do ser humano. Em geral, as vítimas do trabalho escravo são pessoas de baixa renda e de pouca instrução que buscam uma alternativa para sair da pobreza. Muitas vezes, a exploração é de crianças, que passam a morar na residência de famílias abastadas sob a justificativa de ter uma vida melhor.
Na prática, infelizmente, tais crianças sofrem graves violações de direitos humanos, já que o exercício da atividade doméstica foi incluída na Lista de Piores Formas de Trabalho Infantil. A Lista TIP é uma classificação das atividades que mais oferecem risco à saúde, ao desenvolvimento e à moral de crianças e adolescentes, conforme determinam o Decreto nº 6.481, de 12 de junho de 2008 [1] e a Convenção nº 182 da OIT.
Função do Direito e o problema da prescrição
A gravidade das ofensas decorrentes da escravidão moderna causam lesão à vítima e a toda sociedade por configurar crime contra a humanidade. Por esse motivo, o autor dessas violações deve ser responsabilizado criminalmente, além de ser obrigado ao pagamento de indenização por danos morais e das verbas trabalhistas previstas em lei.
Sabemos que nenhuma indenização é capaz de reparar o trauma sofrido ou as violências vividas. Assim, a função do Direito, nestes casos, é garantir à vítima um futuro melhor.
Entretanto, para se obter a indenização devida, é necessário ultrapassar o problema da prescrição.
Segundo Maria Helena Diniz [2], a violação de um direito cria para o seu titular a pretensão de fazer valer em juízo a prestação devida, o cumprimento da norma legal ou contratual infringida ou a reparação de um mal causado, dentro de um prazo legal. Desse modo, se o titular não agir dentro do referido prazo sofrerá uma sanção adveniente, que é a prescrição, ou seja, a perda do direito de ação.
Portanto, a prescrição é a perda da pretensão de reparar o direito violado em razão da inércia do titular no prazo estabelecido em lei. Seu objetivo é garantir a segurança jurídica e a estabilidade social.
No Direito do Trabalho, durante a vigência do contrato, o empregado poderá pleitear os direitos violados dos últimos cinco anos; e após a rescisão, terá dois anos para ingressar com ação, conforme prevê o inciso XXIX do artigo 7º da CF.
Imprescritibilidade
Apesar disso, existem pretensões imprescritíveis que se justificam pela necessidade de tutelar o interesse público. Ora, como a escravidão moderna ofende os direitos humanos, ela não pode ser admitida nem mesmo se ultrapassado o prazo prescricional.
Assim, de acordo com o conjunto de princípios e garantias constitucionais, na hipótese de submissão de um trabalhador à condição análoga à de escravo, não se pode admitir a perda do direito de reparação pelo decurso do prazo, pois a restrição da liberdade moral e física impediram que o ofendido buscasse uma reparação no prazo legal.
Quando a violação se dá no meio doméstico, em que a vítima é introduzida na residência familiar ainda criança e cresce sob a falsa ideia de “ser parte da família”, a situação é ainda mais complexa. Isso porque, nesses casos, os vínculos afetivos e emocionais da criança trabalhadora são construídos com os próprios algozes, fazendo com que a vítima da exploração se sinta “grata” por receber condições mínimas de sobrevivência.
Não é por menos que o Ministério Público do Trabalho, por meio da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete) emitiu a Nota Técnica nº 02/2022 [3], sobre a imprescritibilidade de pretensões trabalhistas relativas ao trabalho em condição análoga à de escravo (artigo 149 do Código Penal) e ao tráfico de pessoas para a exploração do trabalho (artigo 149-A do Código Penal), denominados de escravidão moderna:
“EMENTA. PRESCRIÇÃO. NÃO INCIDÊNCIA EM CASOS DE TRABALHO ESCRAVO E TRÁFICO DE PESSOAS PARA EXPLORAÇÃO DO TRABALHO. 1. No Direito Internacional, a proibição da escravidão moderna alcançou status de norma imperativa, integrante do jus cogens. 2. Conforme decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no “Caso Fazenda Brasil Verde”, o Estado brasileiro deve “adotar as medidas necessárias para garantir que a prescrição não seja aplicada ao delito de Direito Internacional de escravidão e suas formas”. 3. A escravidão é tipificada como crime contra humanidade pelo Estatuto de Roma, que reconhece sua imprescritibilidade (art. 29). 4. Se mesmo na seara penal, em que existe possibilidade de restrição de um dos mais importantes bens jurídicos do indivíduo – a liberdade de ir e vir -, há o reconhecimento da imprescritibilidade concernente à escravidão moderna, com muito maior razão esta deve ser reconhecida na órbita trabalhista, em que são atingidos direitos do empregador de caráter meramente patrimonial. 5. Tanto é assim, que, no acordo firmado, perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no “Caso José Pereira, o Brasil assumiu o compromisso de indenizar a vítima, mesmo depois de ultrapassados os prazos prescricionais bienal e quinquenal. 6. Não se deve imputar inércia à pessoa escravizada quanto à provocação do Poder Judiciário, pois sua condição de hipossuficiência e de sujeição ao explorador a impossibilita de manifestar, com plena autonomia, sua vontade e impede ou dificulta sobremaneira o exercício do direito de ação (aplicabilidade do art. 198, I, do CC, e, por analogia, dos entendimentos da Súmula 278 do STJ, da OJ 375 da SDI-1 do TST e do art. 440 da CLT). 7. Mesmo após o resgate, não deve incidir a prescrição, com base em normas internacionais ratificadas pelo Brasil, bem como em normas nacionais. 8. O art. 7º, XXIX, da CRFB/88, trata dos direitos do trabalhador relacionados às pretensões patrimoniais disponíveis, e não daqueles decorrentes de violações de direitos fundamentais de pessoa submetida à escravidão moderna, os quais ostentam caráter indisponível. 9. A escravidão moderna implica verdadeira negação do princípio da dignidade humana, um dos pilares da República, e não cabe a estipulação de lapso prescricional para pretensões relativas à própria preservação do direito inalienável à dignidade. 10. A escravidão moderna está fortemente relacionada à manutenção do racismo no país, cuja imprescritibilidade deflui do art. 5º, XLII, da CRFB/88.”
ADPF 1.053
Diante da importância do tema, o Ministério Público da União ajuizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 1.053 [4], em 2023, para assegurar a plenitude do regime constitucional de vedação ao trabalho escravo, com a declaração da imprescritibilidade do crime de redução à condição análoga à de escravo, previsto no artigo 149 do Código Penal, que atinge o núcleo essencial dos direitos à liberdade, à dignidade e à igualdade do trabalhador.
Por mais que as esferas penal e trabalhista não se confundam e, a rigor, não se comuniquem, na hipótese do ilícito retratado, não há como admitir que o Estado compactue com a impunidade em razão do decurso do tempo, em detrimento do direito da vítima à reparação integral e à responsabilização do explorador pelas consequências morais, físicas e pecuniárias, advindas de seus atos, como muito bem afirma a ministra Liana Chaib, no Processo nº TST-RRAg-1000612-76.2020.5.02.0053.
Sobre o tema, os ministros da 2ª Turma do TST reconheceram, por unanimidade, a imprescritibilidade do direito à liberdade de trabalho para garantir à trabalhadora em situação análoga à de escravo todos os direitos laborais desde o início da prestação de serviços, a partir de 1998:
“RECURSO DE REVISTA DO MPT. ACÓRDÃO REGIONAL PUBLICADO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.467/2017. AÇÃO CIVIL PÚBLICA – TRABALHO DOMÉSTICO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO – DESMISTIFICAÇÃO DO ARGUMENTO “COMO SE FOSSE DA FAMÍLIA” – GRAVE VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS – RECONHECIMENTO DA IMPRESCRITIBILIDADE DO DIREITO ABSOLUTO A NÃO ESCRAVIZAÇÃO. (aponta violação aos artigos 1º, III, IV, 5º, caput, V, X, 7º, XXII, XXIX, 225, da CF/88, 11, § 1º, da CLT, e 197 a 200, do Código Civil). Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo MPT, juntamente com a DPU, para tutelar direitos individuais de trabalhadora doméstica reduzida, por mais de 20 anos – de 1998 a 2020 -, à condição análoga à de escravo, além de tutelar o direito coletivo da sociedade. Ao analisar o caso, o TRT rejeitou o argumento do Órgão Ministerial segundo o qual é imprescritível a pretensão deduzida em ação trabalhista envolvendo a prática da submissão de trabalhadora doméstica à condição análoga à escravidão. Decidiu a Corte Regional aplicar a prescrição quinquenal prevista no art. 7º, XXIX, da Constituição Federal. Todavia, nos casos envolvendo crime contra a humanidade e grave violação aos direitos fundamentais, a norma geral sobre a prescrição trabalhista deve ser interpretada sistematicamente. Com efeito, extrai-se do conjunto de princípios e garantias constitucionais, bem como de regras explícitas em diplomas nacionais e internacionais, que, na excepcional hipótese de submissão de trabalhador à condição análoga à de escravo, não há como se admitir a consumação de direitos pelo decurso do tempo, pois, nessa circunstância, a restrição da liberdade moral, e até mesmo física, não permite ao ofendido a busca pela reparação de seus direitos. A situação se agrava ainda mais quando ocorre em ambiente doméstico, no qual o trabalhador é mantido em situação de dependência e exploração, e, não raro, ludibriado pela justificativa falaciosa do empregador de que o indivíduo explorado seria ‘como se fosse da família’. Nesta relação, o indivíduo figura como agregado a quem, no início da relação de submissão, é oferecida a ilusão de alcançar melhoria na condição de vida por estar inserido naquele ambiente familiar. Não obstante, na verdade, referidos trabalhadores são submetidos à realidade para a qual foram arregimentados: trabalhar ininterruptas horas, sem direito a salários, descanso remunerado, férias etc., recebendo, quase sempre, pequenos agrados ou pequenas quantias em dinheiro, apenas para sobrevivência, sofrendo restrição alimentar e todo tipo de humilhação e de violência moral e física. Ressalte-se que esse tipo de exploração criminosa é demasiadamente mais difícil de ser constatada por ocorrer no íntimo de uma residência familiar, longe dos olhos da sociedade e dos órgãos de fiscalização do trabalho, favorecendo a continuidade delitiva por longos anos, atribuindo à pessoa o vergonhoso status de patrimônio familiar, chegando, comumente, a ser transmitido pelas gerações de parentes da família empregadora. O reconhecimento da prescrição no caso dos autos projeta uma anuência a essa violação ao direito fundamental a não ser escravizado – que encontra seu análogo na proibição ao tratamento desumano ou degradante, inscrito no artigo 5º, inciso III, da Constituição da República. Além disso, a liberdade do indivíduo é direito fundamental que só pode sofrer restrição por parte do Estado através de um devido processo legal (art. 5º, inciso LIV, CF). Não há autorização constitucional para restrição de liberdade em uma relação privada, o que inclui um vínculo de emprego. A pujança da tese que defende a imprescritibilidade das ações envolvendo a conduta de redução análoga à escravidão é de tal importância que o Ministério Público da União ajuizou, recentemente, a ADPF 1.053. Nela, o PGR postula seja declarada a não recepção, sem redução de texto, dos artigos do Código Penal relativos à prescrição, em especial os artigos 107, inciso IV, e 109 a 112 do CP, quanto ao tipo penal de redução à condição análoga à de escravo, previsto no art. 149 do Código Penal, a fim de torná-lo imprescritível. É certo que as esferas penal e trabalhista não se confundem e, a rigor, não se comunicam. Porém, na hipótese específica do ilícito em comento, não há como admitir que o Estado compactue com a ausência de punição por decurso temporal em detrimento do direito da vítima à reparação integral e da responsabilização, inclusive pecuniária, do algoz por todas as consequências advindas daquela prática. Isso implicaria não só em um salvo conduto ao explorador, como também em um estímulo à repetição e perpetuação do ilícito na nossa sociedade. Além disso, é amplamente reconhecido, na jurisprudência e na doutrina constitucionalista, que os direitos e garantias fundamentais listados no art. 5º da Constituição de 1988 possuem características essenciais, dentre elas a imprescritibilidade. Portanto, fica claro que o direito à liberdade e à impossibilidade de submissão à condição análoga à escravidão constitui garantia fundamental, com previsão no inciso XIII do artigo 5º da CF/88, não podendo ser alcançado pela prescrição. Trata-se de interpretação sistemática, que busca assegurar a máxima efetividade das liberdades civis dos cidadãos. Invoca-se aqui o lúcido ensinamento de Noberto Bobbio, na clássica obra ‘A era dos direitos’, segundo o qual as únicas exceções à máxima da ausência de direitos absolutos são os direitos absolutos a não ser escravizado e de não ser torturado. Para se ter uma boa compreensão da gravidade do crime contra a humanidade que é submeter um trabalhador a condição análoga à de escravo, sua tipificação em âmbito internacional está prevista no Estatuto de Roma com a característica da imprescritibilidade (artigos 7º e 29), tendo a competência para seu julgamento designada ao Tribunal Penal Internacional (cuja jurisdição o Brasil se submete, nos termos do § 4º, do artigo 5º, da Constituição da República). No Brasil, o Estatuto de Roma ingressou no ordenamento jurídico pátrio por meio do Decreto nº 4.338/02. Por isso, é fundamental aplicar de forma analógica o entendimento firmado na Súmula nº 647 do STJ, que reconhece a imprescritibilidade das ações indenizatórias por danos morais e materiais decorrentes de atos de perseguição política com violação de direitos fundamentais ocorridos durante o regime militar, aos casos de trabalho em condição análoga à de escravo. Além disso, no período anterior a 2015 (atingido supostamente pela prescrição quinquenal trabalhista do artigo 7º, XXIX, da Constituição da República), a vítima era considerada, pelo ordenamento jurídico brasileiro como absolutamente incapaz, conforme as regras vigentes à época. Assim, contra ela não poderia correr a prescrição, nos termos do artigo 198, inciso I, do Código Civil. Além desta incapacidade provisória, a prescrição relativa às pretensões envolvendo o período em que a vítima foi submetida à condição análoga à escravidão não poderia correr considerando que a presente ação tem como objeto fato que deve ser apurado no juízo criminal, nos termos do artigo 200 do Código Civil. Não se pode, assim, entender plausível a limitação do direito absoluto a não se submeter à servidão pela eventual incidência do instituto da prescrição, mormente porque o Estado Brasileiro, também signatário da Convenção nº 29 da OIT, que versa sobre o trabalho forçado ou obrigatório, e da Convenção nº 105 da OIT, que trata da abolição do trabalho forçado e proíbe o uso de toda forma de trabalho forçado ou obrigatório, comprometeu-se a combater e reprimir, sem qualquer restrição, as práticas de escravidão moderna. Dessa forma, há que se prover o recurso a fim de se reconhecer imprescritível a pretensão da parte reduzida a trabalho análogo à de escravo, sendo devidos todos os direitos trabalhistas desde o início da prestação de serviço, nos idos de 1998. Recurso de revista conhecido e provido.” (TST, RRAg-1000612-76.2020.5.02.0053, relatora ministra Liana Chaib, DEJT 27/10/2023).
Diante de todos os argumentos apresentados, não restam dúvidas de que são imprescritíveis os direitos trabalhistas violados em razão de trabalho prestado em condições análogas à de escravo.
[1] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/decreto/d6481.htm
[2] Manual de Direito Civil / Maria Helena Diniz. – 4ª ed. – São Paulo: Saraiva Jur, 2022, p. 43.
[3] https://mpt.mp.br/pgt/noticias/nt-n-02-2022-1-2.pdf
[4] https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6609169