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Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Ladrilhos Hidráulicos, Produtos de Cimento, Fibrocimento e Artefatos de Cimento Armado de Curitiba e Região

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Inexigibilidade da Contribuição do Salário Educação para produtores rurais pessoas físicas

Opinião

Certa vez, quando ainda cursava o início da Faculdade de Direito, lembro de ter ouvido de um determinado professor (que também exercia a magistratura) que “Direito é igual cardápio”. Às vezes você já tem uma ideia do que quer, vai lá e apenas escolhe. Às vezes, mesmo que não saiba de antemão, você decide na hora de acordo com a sua vontade (e fome do momento). “Tem argumento e fundamento para todo mundo”, dizia ele, fazendo referência ao processo de decisão de um juiz em analogia com as escolhas que fazemos em um cardápio de restaurante.

Apesar da frase ter sido proferida de forma irônica, por vezes, as situações e julgamentos que presenciamos no dia a dia nos fazem ter a impressão de que os fundamentos de uma decisão tão somente são escolhidos pois servem ao comando que previamente quer-se proferir. Não há compromisso com a construção da decisão a partir daquilo que foi alegado e comprovado dentro do processo. Com a correspondência entre as provas produzidas, as proposições enunciadas pelas partes, e as disposições normativas aplicáveis. Decide-se e indica-se os fundamentos.

Vejamos, por exemplo, a controvérsia em torno do tema da inexigibilidade da Contribuição do Salário-Educação para empregadores que exercem suas atividades na forma da pessoa física.

No julgamento do Tema Repetitivo 362 (Recurso Especial nº 1.162.307/RJ) [1], o Superior Tribunal de Justiça definiu que a referida contribuição tem como sujeito passivo “(…) as empresas, assim entendidas as firmas individuais ou sociedades que assumam o risco de atividade econômica, urbana ou rural, com fins lucrativos ou não (…)”.

Tendo em vista que a Receita Federal, por meio de atos normativos infralegais [2], permaneceu compelindo pessoas físicas à declaração e ao recolhimento dessa exação (incidente à alíquota de 2,5% sobre a folha de salários), os cidadãos que exercem atividade econômica por meio de pessoa física, corretamente passaram a provocar o Judiciário com a finalidade de terem por reconhecido o direito ao não pagamento da contribuição, bem como à compensação dos valores indevidamente recolhidos nos últimos cinco anos.

Dentre tais contribuintes, os produtores rurais, que em grande parte exercem sua atividade agrícola na forma da pessoa física (sobretudo em razão da tributação beneficiada de Imposto de Renda prevista nessas situações), também passaram a requerer a tutela jurisdicional com a finalidade de ficarem resguardados quanto à referida inexigibilidade.

A controvérsia foi apreciada algumas vezes pelo STJ [3] o qual, de forma reiterada, se posicionou no sentido de que produtores rurais pessoas físicas que não possuam registro no CNPJ, por não se enquadrarem no conceito de empresa, não se qualificam como sujeito passivo da Contribuição do Salário Educação.

Planejamento fiscal abusivo

Até aí tudo bem. Os juízos de primeira instância, em sua grande maioria, com observância dos precedentes do STJ, passaram a reconhecer o direito pleiteado.

Ocorre que a União Federal, talvez inconformada com a quantidade de contribuintes que corretamente foram ao Judiciário buscar a tutela de seus direitos, passou a argumentar que a mera constatação de que o produtor rural figura no quadro societário de outras empresas (pessoas jurídicas com inscrição no CNPJ) inviabilizaria o pleito requerido já que, tal fato, por si só, já seria indicativo suficiente para configuração de “fraude” ou de “planejamento fiscal abusivo”.

Parte das Turmas dos tribunais federais de segunda instância [4], passaram, de chapa, a valer-se de tal argumento para reformar as decisões de primeira instância e denegar o pedido dos contribuintes com desvirtuamento do precedente do STJ. Basta que o produtor rural participe de empresa (do agronegócio ou, às vezes, de segmento diverso) que restará caracterizada situação de “planejamento fiscal abusivo”, mesmo que o jurisdicionado nem tenha ainda obtido decisão que lhe assegure à inexigibilidade do referido tributo.

Inicialmente, há de se evidenciar que a ressalva concernente à “inexistência de cadastro/registro no CNPJ” diz respeito a situação em que o produtor rural exerce sua atividade rural como pessoa física (com cadastro no CAEPF [5] e inscrição no CEI [6]) e concomitantemente também mantém seu nome registrado como contribuinte individual no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ). Isto é, trata-se da situação na qual o indivíduo exerce sua atividade rural como pessoa física e simultaneamente detém cadastro de seu nome no CNPJ com remissão à mesma atividade rural.

Ao se analisar as razões de decidir dos julgamentos que realizaram essa distinção constata-se que a justificativa está em evitar que uma mesma atividade econômica possa usufruir ora das benesses do regime aplicado às pessoas físicas, ora daquelas existentes para as pessoas jurídicas quando for conveniente. Assim, nesses casos específicos, a atividade poderá ser considerado para todos os fins como “empresa” e poderá ser devida a Contribuição do Salário Educação.

A utilização desse critério de discrímen é, todavia, questionável pois alguns Estados obrigam o produtor rural pessoa física a efetuarem a inscrição de seu nome em CNPJ[7] tão somente para fins burocráticos/fiscalizatórios e essa inscrição (mera formalidade exigida para fins fiscais) não tem o condão de, por si só, descaracterizar a atividade rural realizada na pessoa física para qualificá-la como empresária nos termos da legislação. Isto é, o produtor pode exercer de fato sua atividade rural na pessoa física e deter cadastro de CNPJ apenas para cumprimento de uma formalidade exigida pela Administração Pública.

De toda forma, tal situação em nada se confunde com aquela em que o produtor rural tão somente participa ou participou do quadro societário de outras empresas (pessoas jurídicas) que exercem distintas e específicas atividades econômicas.

Essas empresas, por se tratarem de pessoas jurídicas, por óbvio possuem cadastro no CNPJ. Mas não há qualquer óbice para isso. Não há qualquer empecilho para que um cidadão exerça múltiplas atividades econômicas dentro de um mesmo segmento (agropecuário, por exemplo) ou de diferentes ramos (agropecuário, comercial atacadista, varejista, serviços etc.). Trata-se da mais clara expressão dos direitos ao livre exercício de atividades econômicas e ao livre exercício do trabalho, ofício ou profissão previstos, respectivamente, nos artigos 170, § único e 5º, inciso XIII, ambos da CF/88.

Tal fato (exercício de diversas atividades econômicas com identidade ou não de objetos sociais) jamais pode ser considerado, por si só, como indicativo de uma conduta ilícita ou fraudulenta. Ir nesse sentido importa, inclusive, afronta ao postulado da isonomia (artigo 5º, caput da CF/88) na medida em que cidadãos que se encontram em uma mesma situação jurídica (produtores rurais que exercem sua atividade econômico-rural na pessoa física) passam a ser discriminados a depender se participam ou não de outras empresas. Por outras palavras, atribui-se tratamento prejudicial ao cidadão tão somente pelo fato dele exercer outras atividades econômicas.

Não é raro que produtores rurais exerçam atividade agrícola (cultivo de café ou pimenta, por exemplo) ou pecuária, de sua exclusiva propriedade, na forma da pessoa física, e concomitantemente participem de pessoa jurídica (empresa familiar juntamente com irmãos, por exemplo) cujo objeto social seja o desempenho da mesma ou outra atividade econômica, porém com personalidade e funcionários (empregados) próprios que em nada se confundem com aqueles da atividade desenvolvida na pessoa física. Ainda, também é comum que o produtor constitua empresa patrimonial com a finalidade de integralizar os imóveis rurais (fazendas, sítios, lotes etc.) na pessoa jurídica, mas mantenha o exercício da atividade rural na pessoa física. Ou, o que é mais frequente, a pessoa pode ser empresária de outros ramos (participar de empresas comerciais, de serviço ou industriais) e simultaneamente se dedicar a atividade rural exercida na forma da pessoa física como uma fonte de rendimento alternativa.

Em todas essas situações é plenamente justificável a utilização das duas formas no intuito de separar operações com atividades completamente dissociadas e propósitos negociais próprios.

Tais empresas (caso tenham funcionários) recolhem e permanecerão recolhendo a Contribuição do Salário Educação incidente no percentual de 2,5 % sobre suas folhas de salários, sob pena de se sujeitarem a autuações da Receita Federal pois, como se sabe, tal exação é devida pelas pessoas jurídicas.

Não bastasse isso, vale relembrar que é competência (atribuição) de autoridade administrativa federal (no caso, integrante do aparato da Receita Federal), no exercício de atividade fiscalizatória, a constatação de indícios a culminar com identificação de suposta conduta de “abuso de formas” ou “planejamento fiscal abusivo” [8] e, isso, destaca-se, por meio de procedimento/processo administrativo com apresentação dos elementos comprobatórios da imputação e abertura para manifestação do sujeito passivo fiscalizado. Não pode nem possui competência, pois, a Procuradoria da Fazenda Nacional para simplesmente imputar e pressupor sem qualquer prova uma futura conduta abusiva do contribuinte.

O abuso do direito não se presume, mas, ao contrário, reclama comprovação por meio de fiscalização regular que, eventualmente, resulte em lavratura de auto de infração e ampla discussão nas vias administrativas, sem prejuízo de posterior controle judicial.

Fundamento é irracional

A verdade é que em todos esses casos não há que se falar nem em planejamento tributário, nem ainda (o que é pior) em configuração de ato de planejamento fiscal abusivo. Trata-se de mera hipótese de não incidência do tributo sobre determinada categoria de sujeitos.

Tais produtores sempre recolheram e, salvo àqueles que possuem decisão judicial, permanecem recolhendo a Contribuição do Salário-Educação incidente sobre a remuneração paga aos empregados vinculados à atividade exercida na pessoa física. As empresas de que fazem parte também permanecem e permanecerão, por imposição legal, recolhendo mensalmente a mencionada contribuição, sob pena de serem autuadas pela Receita Federal. Como então afirmar que já resta configurado um ato intencional de dissimulação do fato gerador do tributo, isto é, uma “situação de planejamento fiscal abusivo”?

A situação é tão anômala que a imputação resta configurada com a mera indicação pelo representante da Fazenda que o autor da ação participa de outras empresas. Exerce atividade rural na pessoa física e possui participação em outra empresa agropecuária? Pronto. Está incorrendo em planejamento abusivo e fraudando a administração federal.

Ao contribuinte cabe tentar demonstrar a irracionalidade do referido fundamento e, isso, quando não é impedido sob a alegação de que não é possível instrução probatória naquela fase processual. Mas se não é possível, como então pôde a União Federal “comprovar” o suposto fato do planejamento fiscal abusivo?

Em breve síntese, produtor rural que exerce sua atividade rural na pessoa física não é sujeito passivo da Contribuição do Salário Educação. Com efeito, uma vez demonstrado que (1) é produtor rural e (2) exerce sua atividade na forma da pessoa física, tem direito líquido e certo a não se sujeitar à incidência desse tributo sobre a remuneração paga aos empregados vinculados a referida atividade.

Se a administração federal supõem que esse contribuinte em breve vai transferir artificialmente funcionários de sua PJ para sua PF com a finalidade de deixar de recolher a contribuição, deverá fazer valer seu poder fiscalizatório e, havendo indícios, imputar autuação por meio de um processo administrativo em que se observe o direito a produção de provas, ampla defesa e contraditório. É esse o caminho previsto constitucionalmente.

Por fim, há de se relembrar que é direito dos cidadãos a obtenção de uma tutela jurisdicional efetiva na qual o pronunciamento judicial decorra dos fatos alegados e comprovados no processo, bem como das normas jurídicas aplicáveis àquelas situações concretas. Caso contrário, teremos julgamentos que começam pelo final, isto é, julgamentos em que primeiro se decide para depois se escolher os fundamentos. Se assim for, estaremos fadados à reduzir o Direito (como processo de decisão) às escolhas que fazemos em cardápios de restaurante.


[1] Relator ministro Luiz Fux, 1ª Seção, julgado em 24/11/2010, DJe de 3/12/2010.

[2] Confira-se anexo V da Instrução Normativa RFB nº 2110 de 17.10.2022. Vale ressalvar, que em 05.04.2024, após manifestações favoráveis da PGFN, a Receita Federal publicou a IN nº 2185 que, dentre outras alterações, incluiu o §3 no art. 96 da IN 2110 para dispor expressamente que “(…) o produtor rural pessoa física sem inscrição em CNPJ não é sujeito passivo da contribuição para o salário educação”.

[3]REsp n. 1.743.901/SP, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 9/5/2019, DJe de 3/6/2019; AgInt no REsp 1711893/SP, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 16/08/2018, DJe 24/08/2018.

[4] Confira-se: Apelação Cível nº 1006015-89.2022.4.01.3602 (TRF 1. 8ª Turma de Julgamento. Relator: Desembargador Federal Novély Vilanova. PJe 03.02.2025); Apelação Cível nº 10082821220234013307 (TRF 1. 7ª Turma de Julgamento. Relator: Desembargador Federal Hercules Fajoses. PJe 30.01.2025); Apelação Cível nº 5002146-88.2022.4.02.5003 (TRF 2. 4ª Turma Especializada. Relator: Desembargador Federal Luiz Antonio Soares. Julgado em 12.09.2023. DJe 20/09/2023).

[5] Cadastro de Atividade Econômica da Pessoa Física.

[6] Cadastro Específico do INSS.

[7] Confira-se, por exemplo, no Estado de São Paulo, a Portaria CAT n° 117/10.

[8] Art. 116. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus efeitos:

(…)

Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. (Incluído pela Lcp nº 104, de 2001)

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